quarta-feira, 28 de julho de 2010

Por amor

Desligou a TV e foi para a cozinha preparar o almoço. Estava chocada com as notícias do dia. Um homem bomba cometera um atentado no Afeganistão e matara pelo menos 300 inocentes. O atentado se justificou pelo amor a Deus. No Brasil, um homem fora preso por matar a mulher e a filha a facadas em um apartamento na zona sul do Rio de Janeiro. O motivo: amor.
Ainda estava acabando de fazer o almoço quando o marido chegou em casa. Estava contente e trazia nas mãos uma caixa de papelão com vários furos nas laterais e na parte superior. Desligou o fogão e, ao chamado do marido, também movida por certa curiosidade, foi ver o que tinha dentro da caixa. Será que era um presente para ela? Mas o que seria? Não conseguia imaginar. O marido não era lá um homem tão romântico e presente àquela altura... Tudo bem que era uma boa esposa. Amava e respeitava o marido, cuidava da casa, era fiel... Então a caixa fora aberta. Surpresa. Lá dentro, encolhido e tímido, o pássaro preto se escondia no fundo da caixa. “- Não é lindo?”. E como falar ao marido que não? Ela não era muito chegada a bichos, mas olhando o pássaro lá no fundo da caixa, bem que ele tinha seus encantos. Trataram logo de arrumar um lugar para o bichinho. Ele não ficava preso, pois não se adaptou bem à gaiola. O amor do marido pelo pássaro cresceu. Era todo cuidados e mimos. Chegava do trabalho e corria direto para as asas do pássaro. Punha comida, dava água, banho, cantavam juntos... Depois jantava, dava um beijo na mulher e ia assistir TV. O pássaro pousava ao lado do sofá e por lá ficava até a hora de dormir. E a relação com a mulher só piorava. Era pior do que se ele tivesse uma amante. Dividir a atenção do marido com um pássaro. E ela odiava o animal a cada dia. Nunca sentira isso antes. Ela que sempre fora tão meiga tão cheia de amores. Incapaz de fazer mal a menor das criaturas. E via seu casamento se deteriorar a cada dia. Tentou sumir com o bicho enquanto o marido não estava em casa. Ia dizer que fugira pela janela enquanto ela tomava banho. Mas o animal era esperto e deu logo um jeito de se fazer de coitado. O marido brigou com ela. Quase saiu de casa e a ideia de sumir com o pássaro preto é que sumiu. A saída para os problemas era a boa convivência. Mas a ave, com aqueles olhos de piedade, por dentro, era pura vingança. Quando o marido saía para o trabalho a crueldade começava. E tinha início o espetáculo. A ave atacava a mulher. Corria atrás dela por toda a casa. Bicava suas pernas, seus braços, seu cabelo. A mulher gritava. Chamava os vizinhos e até mesmo estranhos que passavam pela rua. Pedia para que prendessem a ave, dessem sumiço nela, mas o pássaro era só simulação. Conquistava o carinho de todos e reinava absoluta no lar que a mulher tanto lutara para construir. Quando o marido chegava era para a ave que ele corria. Acusava a mulher de fazer mal ao indefeso bicho. Ela, então, passava por louca e a ave, por dentro, ria daquela pobre mulher. E todo dia era a mesma cena. Ataques, acusações. A mulher se reduzia a nada dentro de sua própria casa. Até que um dia surgiu a oportunidade perfeita. Ela também sabia ser cruel. Sabia defender o que era seu. Foram viajar. Insistiu para que o marido levasse o pássaro também. Pela primeira vez colocaram-no em uma gaiola. A gaiola fora trancada dentro do porta malas. O pássaro viajou tranqüilo. Sabia do amor do homem por ele. Chegaram ao destino, a mulher jogou todas as suas armas, bem como fazem as mulheres quando o que está em jogo é a família, o lar, a dignidade. E desse modo fez o homem esquecer o pássaro. Esse ficou dias trancado na escuridão do porta malas. Não tinha água nem comida. Teve medo da solidão e da morte. Aos poucos, fraco, foi se definhando. Quando o homem se lembrou já era tarde. Estava morto. A mulher, simulando surpresa, chorava com os olhos e ria com toda a sua alma. Culpou o marido. Como pôde ser tão distraído? E quando tivessem filhos? Não os deixariam sozinhos com ele. O veneno escorria por seus lábios, mas o gosto da vitória era amargo. Olhando para o pássaro sem vida, jogado pelo canto, triunfou, mas logo veio a culpa. Em seguida a pena. Nunca conseguiria retomar o casamento com essa mentira. Como podia ser tão cruel? Pobre ave. Mas foi por amor. E por amor também se mata. Tratou logo de enterrar a ave, consolar o marido e continuar a vida.

terça-feira, 13 de julho de 2010

De quem é o poder?

"E agora - agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas - mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim." (LISPECTOR, p. 106)

Final de tarde, ainda um pouco tonta fechei o livro. "Tudo começa e termina com um sim" - pensei. Troquei as páginas de Clarice Lispector por um passeio inquietante entre os tantos canais da TV. Foi então que uma imagem me chamou a atenção e, mais do que eu via através da tela, o que ouvia é que me prendia ali. Era uma entrevista da atriz e diretora francesa Fanny Ardant a um canal de TV brasileiro. Era uma mulher muito bonita e inteligente e, em um francês que eu mal entendia, falava sobre cinema, sua vida e sentimentos. Me interessei e pousei meu corpo comodamente em frente a televisão. E por ali permaneci por horas a tentar desvendar outra língua. Me recusava a ler as legendas e pouco entendia daquilo tudo. Foi quando, por um descuido, meus olhos passaram brevemente pelas letras brancas abaixo da imagem de Fanny. Um susto. Todas aquelas letras diziam: " Eu lia como se droga: para esquecer a vida". Aquela única frase que entendi completamente por um descuido me chocou de forma intensa. Era como se tivesse apanhado. Um tapa na cara e eu fiquei ali parada, sem nenhuma reação, em frente a TV. Ela continuava a falar, tranquila. Eu, inquieta. Desliguei a TV. "Lia como se droga" era a única coisa em que conseguia pensar. E aquilo me chocou pela forma agressiva que assumia. Me chocou pela verdade pura, simples, direta. A atriz, com essa frase, respondia ao brasileiro quando ele a questionou se durante a juventude ela lia muito. Eu, então, me reconheci ali. Sempre fui atraída pelo jogo de perder e achar que os autores tanto gostam. E lia tudo. Sem medo. E, ao ouvir aquela frase, percebi que era pelo mesmo motivo. Encontrava nos livros a fuga. Quando me deparava com personagens felizes, minha felicidade se multiplicava. Esquecia os problemas para ser feliz com eles. E se estavam tristes, minha tristeza era pequena. E um sentimento de solidariedade me invadia. Lutava, chorava, corria, aprendia. Era outro mundo. Um mundo que não conhecia completamente. Um submundo, um lugar escuro, que me oferecia sentimentos ilícitos. Um mundo de novas possibilidades, novos caminhos e que, para mim, era tudo o que eu queria ter.
Mas aí lembrei-me de uma música que dizia que "os livros não são sinceros". E aquilo nunca ficou claro para mim. Até aquele instante. Devemos aproveitar as oportunidades que a leitura nos oferece, mas não devemos nos prender a ela. Devemos procurar essas oportunidades não só nas páginas de livros, mas no mundo. Os livros podem ser amigos, mas também sabem ser cruéis. Porque são feitos inteiramente por seres humanos. Quer maior crueldade do que essa? E são formados por palavras, pela linguagem. E a linguagem é inteiramente humana. Barthes disse que a língua é cruel, que condiciona e domina o homem. O homem que sabe usá-la, consequentemente domina outros homens ou, pelo menos, pensa que domina. Mas a verdade é que todos somos dominados por ela. Não só o ato da leitura pode ser comparado ao de se drogar. O de escrever também. Ao escrever o autor cria um mundo que não é o que ele realmente vê. E que nunca poderá ser, pois a linguagem, por mais que tente, nunca chegará perto do real. Então, mais uma vez ela nos engana e nos faz acreditar que aquilo que escrevemos é real, quando, nada mais é, do que apenas uma parte do real. Mas Barthes também afirma que a literatura é a única forma de salvar o homem da arbitrariedade da língua, justamente porque através dela é que temos contato com outros mundos, outras realidades. Mas aí ouço novamente a canção que diz que "os livros não são sinceros" e sou obrigada a concordar com ela. E também concordo com Barthes. Os livros nos dão tudo. Nos oferecem a oportunidade de, pelo menos por um instante, esquecer o que está errado em nossas vidas, nos dão a oportunidade do renascimento, de viver outras vidas, que sao renovadas a cada página que viramos, a cada palavra. Mas são traiçoeiros, porque a nova vida se esgota ali, no último ponto. E dessa vez, não oferecem a oportunidade da escolha e nem nos preparam para isso. Com aquele ponto atiram em nós e definem o fim daquela vida que achávamos ser nova. E assim permanecemos na constante ilusão de que estamos no poder porque temos a língua como aliada. Clarice dizia que a palavra era seu domínio sobre o mundo. E agora questiono se realmente temos esse domínio. Posso mudar o mundo com palavras, é claro. Mas, será mesmo que eu estou no comando? Se leio e escrevo como me drogo, para fugir, será mesmo que tenho esse poder? Ao mesmo tempo que escrevo cartas para amigos e falo sobre flores, posso denunciar mazelas e torturas. Posso calar a censura, mas, ao mesmo tempo, tenho que acreditar nas flores, do contrário, a censura me cala. Então percebo que somos todos dependentes das palavras, da língua. "Minha pátria é a minha língua". Estou sujeito a ela, mas nela também encontro a liberdade. Se "os livros não são sinceros" é porque a língua não o é. É porque o homem não o é. "De quem é o poder? Às vezes você me domina pensando que eu sou teu dono. Me dê poder e eu te mostro o mais inteiro dos sonhos".