quarta-feira, 30 de junho de 2010

Jornalistica

Transcrever talvez seja o maior trabalho de um jornalista. Ficar ali, horas a fio ouvindo a fala do outro, buscando entender e depois de tanto repetir, de tanto escutar, já ser capaz de dizer tudo de cabeça. E nesse momento você assume a fala do outro. Utiliza as palavras do outro. Vira outro. Mas o que é o jornalismo se não um se desfigurar a cada instante? Fingir que não é você? O que escrevo em minhas matérias não sou eu. Mas também não é o outro, pois as palavras foram escolhidas por mim a partir das palavras que o outro me disse. Então, ser jornalista é ser eu e ser o outro ao mesmo tempo. É, ao mesmo tempo, ser ninguém. Eis o desafio. Será que estou preparada para isso? Logo eu, que me sinto tão confortável em meu próprio papel, mesmo quando não me entendo. Mas daí se atrever a ser o outro, de contar a história do outro? Mas é disso que gosto. De não me sentir ali, mas me sentir ali mais do que qualquer coisa. Dizer aos outros o que aquele outro me disse com as minhas palavras. Confuso? Sedutor. E de repente vejo minha vida ali, num papel secundário, na vida dos outros. Dos outros tantos que dependem da minha vida para descobrirem o que se passa no mundo. O que se passa com o mundo. E de papel secundário passo a protagonista. E uma vergonha tão grande toma conta de mim e nessa hora, eu me escondo atrás do outro. Atrás de Marias, Cristinas, Conrados. Atrás de personagens que devem ser tão mais interessantes e tão menos tímidos. São histórias que não vivi. Mas contei e, ao contar, vivi. Então eu deixo de ser aquilo que sinto e que vivo. Conto histórias das quais não sei o final. Até me comovo, mas finjo que nada sinto. E continuo a andar. E me sinto um grande dicionário. Procuro em mim as melhores palavras para escrever as palavras do outro. Procuro em minhas páginas as melhores palavras para definir os sentimentos do outro. Acho em mim o outro que já se perdeu há muito tempo. E faço uma doação. Dou de presente esse outro aos outros que compram minhas palavras. E assim, me acho novamente. Mas a cada vez que me acho, me distancio um pouco mais de mim. Porque a cada vez que me acho, já deixei de ser eu e já me transformei em mim mais o outro. E isso é o jornalismo.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Contos II

Alguma semelhança é mera coincidência.

Lorena chegou mais cedo em casa. Conseguira terminar todas as laudas e agora podia deitar em sua cama e dormir até o dia seguinte. Tomou um banho quente e rápido, colocou o pijama de flanela azul e as meias novas. Prendeu os cabelos loiros e encaracolados com o elástico que estava em cima da mesa de cabeceira e deitou-se na cama. Fechou os olhos por longos instantes, mas o sono não vinha. Enquanto os olhos permaneciam fechados, por pura insistência, apenas uma imagem aparecia no escuro. Era ele. Fazia tanto tempo. Tempo suficiente para esquecer, mas Lorena era estupidamente fraca. A mesma calça desbotada, a camisa sem passar, os cabelos longos e negros, a barba por fazer. No rosto o mesmo sorriso de lado ora escondia, ora mostrava os dentes brancos. Os mesmos olhos baixos, calados e tímidos. Sim, era ele. Lorena abriu os olhos rapidamente. Não queria lembrar. Justo agora que estava tão bem, que conseguira viver a vida de forma tranqüila. Que estava novamente empregada, ganhando bem e pensando até em comprar um novo apartamento e deixar as lembranças para trás. Agora não. Correu até a cozinha e pegou a garrafa de vodca que estava dentro da geladeira. Ao abrir o armário para pegar o copo encontrou a velha xícara que ele tanto gostava. E lembrou-se do café amargo que ele odiava, mas mentia gostar só para agradá-la. Fechou os olhos enquanto tocava toda a extensão da xícara. Parou em um ponto onde havia uma rachadura. Cortou a ponta do dedo como sempre acontecia, mas dessa vez não havia ninguém para cuidar do corte e lembrar o quanto Lorena era manhosa. Deixou a xícara sobre a mesa e voltou ao quarto. Abriu o armário e puxou uma caixa amarela onde se lia 1970. De dentro da caixa surgiram fotos antigas nas quais Lorena usava o vestido que a mãe sempre odiara, mas que ele adorava. A barriga já crescida era envolvida por mãos firmes e carinhosas. Estava acompanhada do mesmo sorriso de lado e a barba por fazer. Eram felizes. No fundo da caixa, um envelope escondia as belas palavras que ele sempre enviava. Os erros de português ficavam pequenos se comparados ao grande amor que aquelas palavras mal escritas exalavam. Na última carta, um pedido de desculpas era acompanhado por um sapato de bebê vermelho, que nunca seria usado. E Lorena chorou. Chorou tanto que as lágrimas molharam o papel já amarelado pelo tempo. E ela teve raiva. Raiva como nunca tivera antes, nem mesmo quando ele colocou as malas no carro e sumiu por entre as ruas e avenidas, deixando-a sozinha no apartamento sem saber como encarar a mãe e todo o resto do mundo. Lorena era tão nova. A vida era tão nova. E pegou tudo: caixa, retratos, xícara. Queimou, rasgou, quebrou. E jogou os restos no lixo, assim como havia feito com a sua vida há exatos 20 anos. E decidiu não mais lembrar tantos detalhes. E fechou os olhos e tentou dormir. E decidiu que a partir de então tudo seria diferente. Acordou assustada. Vestiu a primeira roupa que encontrou e saiu para o trabalho. No caminho avistou uma figura conhecida. Estava de costas e caminhava com a mesma lentidão de sempre. Os cabelos longos eram bagunçados pelo vento. Não. Não pode ser. Aquele caminhar parecia provocar Lorena; “olha, não adianta nem tentar me esquecer.” Desesperada, Lorena mudou a direção do carro e seguiu por entre ruelas apertadas. Já passara ali antes, mas fazia tanto tempo. Desceu do carro e apressou o passo. A chuva começou a cair. Lorena corria como nunca correra antes. Queria gritar, mas a voz lhe faltava. As lágrimas se misturavam às gotas de chuva. “Durante muito tempo em sua vida eu vou viver” – dizia aquele caminhar. Até que Lorena não agüentou mais. Parou. Ajoelhou-se no meio da rua e olhou o homem indo embora. Ele virou o rosto de lado e Lorena pode ver os mesmos olhos baixos desaparecerem mais uma vez. E permaneceu ali, ajoelhada por tempo indefinido, relembrando os detalhes que a deixava tão feliz, relembrando todos os momentos que viveu e os que poderia ter vivido, sonhando a família que teria, o casamento que não aconteceu o filho que não dormiu em seus braços. Enquanto isso a chuva continuava a cair e o homem desaparecia pela longa estrada. E Lorena viu o grande amor morrer ali, bem na sua frente. De novo. Amor tão grande, incapaz de ser esquecido. Amor que de tão grande chegava a doer. Que se perdia entre mil detalhes, todos, que só restava a Lorena relembrar. Levantou-se, voltou até o carro, deixou a música tocar no último volume e seguiu. Não tinha destino, assim como não tinha amor, assim como não tinha mais ninguém, assim como não tinha mais vida. O carro atravessou a estrada e sumiu no meio do oceano. A vida reduziu-se a quase nada. Mas quase nada também era mais um detalhe. E a vida se reduziu a nada. Nem mais detalhes e fim.

Contos

É engraçado, agora dei para escrever contos. Não sei se são bacanas ou se vão ser entendidos, o que importa é que estão aqui. Aproveitem.


Estava sozinho em casa. A televisão ligada era a única companhia, a única forma de vida dentro da sala escura, pois nem ele achava que estava vivo mais, tamanha era a solidão. Mas, em um último sinal de sua condição humana, sentiu fome. Despertou em um impulso só. Não conseguia mais ouvir o que a bela mulher comentava na televisão. Só ouvia o rude barulho que vinha de dentro de si. Era tão forte que chegava a doer. Então se levantou e foi até a cozinha. Acendeu a luz e ficou um tempo parado, observando toda aquela bagunça. A louça acumulada dos dias anteriores ocupava todo o espaço da pia. Um pedaço de lasanha se decompunha em um canto da mesa enquanto uma barata passava apressada entre copos e garfos. Passado o asco, esqueceu-se da cena e dirigiu-se até o armário. A porta rangeu, ou seria o seu atestado de vida que se manifestava através da fome? Não importava mais quando viu uma coisa surpreendente. Ali dentro do armário quase vazio, entre um pacote de biscoitos já aberto e um vidro de geleia estava um panetone. Um panetone, grande, novinho, dentro de uma linda embalagem e amarrado com fita vermelha. Ficou feliz. Ia saciar a fome e voltar para a solidão da sala, onde a mulher da televisão insistia em falar. Pegou uma faca para cortar um suculento pedaço, mas de repente, em um impulso maior do que o que lhe enviou até a cozinha, parou. Ficou observando aquele panetone dentro do armário. E então voltou até a sala e percebeu que se esquecera de montar a árvore de natal. Olhou pela janela e confirmou que os vizinhos também se esqueceram de enfeitar as casas. Foi aí que ouviu na televisão a pior notícia de todos os tempos: Ainda era Março. Março repetiu bem alto. Mas como o panetone estava no armário se ainda não era natal? Pegou o embrulho para verificar a data de validade. Já devia estar velho, meu Deus, a que ponto chegou. Mas era novo. Havia sido fabricado há pouco tempo e, ao abrir o pacote, sentiu o cheiro das frutas cristalizadas. O cheiro do Natal. Mas não havia natal. Então perdera a fome, a mesma condição que ainda o fazia humano. E tentou entender. Quando era menino e ainda morava com a avó, o panetone na mesa indicava que a família se reuniria para comemorar a data tão especial. Encontraria os primos, tias e tios que não via há muito tempo. Ganharia presentes e cantaria canções especiais. Depois, sairia com a avó para assistir a missa e enquanto o padre rezava, brincaria com as outras crianças do lado de fora da igreja. Passada a data especial, a rotina voltaria a acontecer. O pai voltaria a beber e a bater na mãe em seus ataques de fúria. Seria mais uma vez motivo de deboches na escola e passaria o resto dos dias a sonhar com a data tão especial novamente. Em que, pelo menos uma vez, faria parte de uma família. Em que, pelo menos uma vez, seria importante e lembrado por alguém. Mesmo que fosse de mentira. Mas aquele panetone indicava que tudo se acabara. A estratégia capitalista de oferecer o produto a qualquer hora e a qualquer dia do ano banalizara o que para ele representava o único momento de vida. E assim, fora obrigado a retornar à condição animalesca de sua triste trajetória. Dessa vez, para sempre. Sem válvula de escape uma vez por ano. Sem fingir, uma vez por ano, que era feliz. Que fazia parte de um lugar e que fazia falta nesse lugar. Num acesso de fúria jogou o panetone contra a parede. Chorou como uma criança medrosa. Sentiu vergonha e se sentiu pequeno. Fora engolido mais uma vez. Parado, olhando para o panetone no chão teve a ideia que o tiraria daquela condição triste e sozinha que sempre fora obrigado a aceitar. Não perderia mais uma vez. Seria astuto e revidaria o próprio destino. Se a indústria lhe dava panetone todos os dias, todos os dias seriam natal. E ele então poderia viver o belo dia durante todos os dias do ano. Armaria a árvore, compraria presentes e chamaria alguns conhecidos para jantar. E assim o fez. Mas não aconteceu. As pessoas se afastaram mais. Foi chamado de louco, pensaram que havia voltado a beber. Chamaram os médicos e ele foi levado. Ainda tentava convencer a enfermeira de que era natal, de que haveria uma grande festa, mas ninguém queria ouvir. Aplicaram-lhe uma injeção e o jogaram em um quarto escuro. Então descobriu que não poderia mudar o destino e que a vida havia de ser assim. Recolheu-se à sua insignificância e, chorando, fechou os olhos. E rezou para que nunca mais os abrisse. Nunca fizera parte daquele mundo. Nunca o deixaram fazer parte daquele mundo. Mas, por quê? Nunca saberia.