quarta-feira, 23 de junho de 2010

Contos

É engraçado, agora dei para escrever contos. Não sei se são bacanas ou se vão ser entendidos, o que importa é que estão aqui. Aproveitem.


Estava sozinho em casa. A televisão ligada era a única companhia, a única forma de vida dentro da sala escura, pois nem ele achava que estava vivo mais, tamanha era a solidão. Mas, em um último sinal de sua condição humana, sentiu fome. Despertou em um impulso só. Não conseguia mais ouvir o que a bela mulher comentava na televisão. Só ouvia o rude barulho que vinha de dentro de si. Era tão forte que chegava a doer. Então se levantou e foi até a cozinha. Acendeu a luz e ficou um tempo parado, observando toda aquela bagunça. A louça acumulada dos dias anteriores ocupava todo o espaço da pia. Um pedaço de lasanha se decompunha em um canto da mesa enquanto uma barata passava apressada entre copos e garfos. Passado o asco, esqueceu-se da cena e dirigiu-se até o armário. A porta rangeu, ou seria o seu atestado de vida que se manifestava através da fome? Não importava mais quando viu uma coisa surpreendente. Ali dentro do armário quase vazio, entre um pacote de biscoitos já aberto e um vidro de geleia estava um panetone. Um panetone, grande, novinho, dentro de uma linda embalagem e amarrado com fita vermelha. Ficou feliz. Ia saciar a fome e voltar para a solidão da sala, onde a mulher da televisão insistia em falar. Pegou uma faca para cortar um suculento pedaço, mas de repente, em um impulso maior do que o que lhe enviou até a cozinha, parou. Ficou observando aquele panetone dentro do armário. E então voltou até a sala e percebeu que se esquecera de montar a árvore de natal. Olhou pela janela e confirmou que os vizinhos também se esqueceram de enfeitar as casas. Foi aí que ouviu na televisão a pior notícia de todos os tempos: Ainda era Março. Março repetiu bem alto. Mas como o panetone estava no armário se ainda não era natal? Pegou o embrulho para verificar a data de validade. Já devia estar velho, meu Deus, a que ponto chegou. Mas era novo. Havia sido fabricado há pouco tempo e, ao abrir o pacote, sentiu o cheiro das frutas cristalizadas. O cheiro do Natal. Mas não havia natal. Então perdera a fome, a mesma condição que ainda o fazia humano. E tentou entender. Quando era menino e ainda morava com a avó, o panetone na mesa indicava que a família se reuniria para comemorar a data tão especial. Encontraria os primos, tias e tios que não via há muito tempo. Ganharia presentes e cantaria canções especiais. Depois, sairia com a avó para assistir a missa e enquanto o padre rezava, brincaria com as outras crianças do lado de fora da igreja. Passada a data especial, a rotina voltaria a acontecer. O pai voltaria a beber e a bater na mãe em seus ataques de fúria. Seria mais uma vez motivo de deboches na escola e passaria o resto dos dias a sonhar com a data tão especial novamente. Em que, pelo menos uma vez, faria parte de uma família. Em que, pelo menos uma vez, seria importante e lembrado por alguém. Mesmo que fosse de mentira. Mas aquele panetone indicava que tudo se acabara. A estratégia capitalista de oferecer o produto a qualquer hora e a qualquer dia do ano banalizara o que para ele representava o único momento de vida. E assim, fora obrigado a retornar à condição animalesca de sua triste trajetória. Dessa vez, para sempre. Sem válvula de escape uma vez por ano. Sem fingir, uma vez por ano, que era feliz. Que fazia parte de um lugar e que fazia falta nesse lugar. Num acesso de fúria jogou o panetone contra a parede. Chorou como uma criança medrosa. Sentiu vergonha e se sentiu pequeno. Fora engolido mais uma vez. Parado, olhando para o panetone no chão teve a ideia que o tiraria daquela condição triste e sozinha que sempre fora obrigado a aceitar. Não perderia mais uma vez. Seria astuto e revidaria o próprio destino. Se a indústria lhe dava panetone todos os dias, todos os dias seriam natal. E ele então poderia viver o belo dia durante todos os dias do ano. Armaria a árvore, compraria presentes e chamaria alguns conhecidos para jantar. E assim o fez. Mas não aconteceu. As pessoas se afastaram mais. Foi chamado de louco, pensaram que havia voltado a beber. Chamaram os médicos e ele foi levado. Ainda tentava convencer a enfermeira de que era natal, de que haveria uma grande festa, mas ninguém queria ouvir. Aplicaram-lhe uma injeção e o jogaram em um quarto escuro. Então descobriu que não poderia mudar o destino e que a vida havia de ser assim. Recolheu-se à sua insignificância e, chorando, fechou os olhos. E rezou para que nunca mais os abrisse. Nunca fizera parte daquele mundo. Nunca o deixaram fazer parte daquele mundo. Mas, por quê? Nunca saberia.

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