Alguma semelhança é mera coincidência.
Lorena chegou mais cedo em casa. Conseguira terminar todas as laudas e agora podia deitar em sua cama e dormir até o dia seguinte. Tomou um banho quente e rápido, colocou o pijama de flanela azul e as meias novas. Prendeu os cabelos loiros e encaracolados com o elástico que estava em cima da mesa de cabeceira e deitou-se na cama. Fechou os olhos por longos instantes, mas o sono não vinha. Enquanto os olhos permaneciam fechados, por pura insistência, apenas uma imagem aparecia no escuro. Era ele. Fazia tanto tempo. Tempo suficiente para esquecer, mas Lorena era estupidamente fraca. A mesma calça desbotada, a camisa sem passar, os cabelos longos e negros, a barba por fazer. No rosto o mesmo sorriso de lado ora escondia, ora mostrava os dentes brancos. Os mesmos olhos baixos, calados e tímidos. Sim, era ele. Lorena abriu os olhos rapidamente. Não queria lembrar. Justo agora que estava tão bem, que conseguira viver a vida de forma tranqüila. Que estava novamente empregada, ganhando bem e pensando até em comprar um novo apartamento e deixar as lembranças para trás. Agora não. Correu até a cozinha e pegou a garrafa de vodca que estava dentro da geladeira. Ao abrir o armário para pegar o copo encontrou a velha xícara que ele tanto gostava. E lembrou-se do café amargo que ele odiava, mas mentia gostar só para agradá-la. Fechou os olhos enquanto tocava toda a extensão da xícara. Parou em um ponto onde havia uma rachadura. Cortou a ponta do dedo como sempre acontecia, mas dessa vez não havia ninguém para cuidar do corte e lembrar o quanto Lorena era manhosa. Deixou a xícara sobre a mesa e voltou ao quarto. Abriu o armário e puxou uma caixa amarela onde se lia 1970. De dentro da caixa surgiram fotos antigas nas quais Lorena usava o vestido que a mãe sempre odiara, mas que ele adorava. A barriga já crescida era envolvida por mãos firmes e carinhosas. Estava acompanhada do mesmo sorriso de lado e a barba por fazer. Eram felizes. No fundo da caixa, um envelope escondia as belas palavras que ele sempre enviava. Os erros de português ficavam pequenos se comparados ao grande amor que aquelas palavras mal escritas exalavam. Na última carta, um pedido de desculpas era acompanhado por um sapato de bebê vermelho, que nunca seria usado. E Lorena chorou. Chorou tanto que as lágrimas molharam o papel já amarelado pelo tempo. E ela teve raiva. Raiva como nunca tivera antes, nem mesmo quando ele colocou as malas no carro e sumiu por entre as ruas e avenidas, deixando-a sozinha no apartamento sem saber como encarar a mãe e todo o resto do mundo. Lorena era tão nova. A vida era tão nova. E pegou tudo: caixa, retratos, xícara. Queimou, rasgou, quebrou. E jogou os restos no lixo, assim como havia feito com a sua vida há exatos 20 anos. E decidiu não mais lembrar tantos detalhes. E fechou os olhos e tentou dormir. E decidiu que a partir de então tudo seria diferente. Acordou assustada. Vestiu a primeira roupa que encontrou e saiu para o trabalho. No caminho avistou uma figura conhecida. Estava de costas e caminhava com a mesma lentidão de sempre. Os cabelos longos eram bagunçados pelo vento. Não. Não pode ser. Aquele caminhar parecia provocar Lorena; “olha, não adianta nem tentar me esquecer.” Desesperada, Lorena mudou a direção do carro e seguiu por entre ruelas apertadas. Já passara ali antes, mas fazia tanto tempo. Desceu do carro e apressou o passo. A chuva começou a cair. Lorena corria como nunca correra antes. Queria gritar, mas a voz lhe faltava. As lágrimas se misturavam às gotas de chuva. “Durante muito tempo em sua vida eu vou viver” – dizia aquele caminhar. Até que Lorena não agüentou mais. Parou. Ajoelhou-se no meio da rua e olhou o homem indo embora. Ele virou o rosto de lado e Lorena pode ver os mesmos olhos baixos desaparecerem mais uma vez. E permaneceu ali, ajoelhada por tempo indefinido, relembrando os detalhes que a deixava tão feliz, relembrando todos os momentos que viveu e os que poderia ter vivido, sonhando a família que teria, o casamento que não aconteceu o filho que não dormiu em seus braços. Enquanto isso a chuva continuava a cair e o homem desaparecia pela longa estrada. E Lorena viu o grande amor morrer ali, bem na sua frente. De novo. Amor tão grande, incapaz de ser esquecido. Amor que de tão grande chegava a doer. Que se perdia entre mil detalhes, todos, que só restava a Lorena relembrar. Levantou-se, voltou até o carro, deixou a música tocar no último volume e seguiu. Não tinha destino, assim como não tinha amor, assim como não tinha mais ninguém, assim como não tinha mais vida. O carro atravessou a estrada e sumiu no meio do oceano. A vida reduziu-se a quase nada. Mas quase nada também era mais um detalhe. E a vida se reduziu a nada. Nem mais detalhes e fim.
Lorena chegou mais cedo em casa. Conseguira terminar todas as laudas e agora podia deitar em sua cama e dormir até o dia seguinte. Tomou um banho quente e rápido, colocou o pijama de flanela azul e as meias novas. Prendeu os cabelos loiros e encaracolados com o elástico que estava em cima da mesa de cabeceira e deitou-se na cama. Fechou os olhos por longos instantes, mas o sono não vinha. Enquanto os olhos permaneciam fechados, por pura insistência, apenas uma imagem aparecia no escuro. Era ele. Fazia tanto tempo. Tempo suficiente para esquecer, mas Lorena era estupidamente fraca. A mesma calça desbotada, a camisa sem passar, os cabelos longos e negros, a barba por fazer. No rosto o mesmo sorriso de lado ora escondia, ora mostrava os dentes brancos. Os mesmos olhos baixos, calados e tímidos. Sim, era ele. Lorena abriu os olhos rapidamente. Não queria lembrar. Justo agora que estava tão bem, que conseguira viver a vida de forma tranqüila. Que estava novamente empregada, ganhando bem e pensando até em comprar um novo apartamento e deixar as lembranças para trás. Agora não. Correu até a cozinha e pegou a garrafa de vodca que estava dentro da geladeira. Ao abrir o armário para pegar o copo encontrou a velha xícara que ele tanto gostava. E lembrou-se do café amargo que ele odiava, mas mentia gostar só para agradá-la. Fechou os olhos enquanto tocava toda a extensão da xícara. Parou em um ponto onde havia uma rachadura. Cortou a ponta do dedo como sempre acontecia, mas dessa vez não havia ninguém para cuidar do corte e lembrar o quanto Lorena era manhosa. Deixou a xícara sobre a mesa e voltou ao quarto. Abriu o armário e puxou uma caixa amarela onde se lia 1970. De dentro da caixa surgiram fotos antigas nas quais Lorena usava o vestido que a mãe sempre odiara, mas que ele adorava. A barriga já crescida era envolvida por mãos firmes e carinhosas. Estava acompanhada do mesmo sorriso de lado e a barba por fazer. Eram felizes. No fundo da caixa, um envelope escondia as belas palavras que ele sempre enviava. Os erros de português ficavam pequenos se comparados ao grande amor que aquelas palavras mal escritas exalavam. Na última carta, um pedido de desculpas era acompanhado por um sapato de bebê vermelho, que nunca seria usado. E Lorena chorou. Chorou tanto que as lágrimas molharam o papel já amarelado pelo tempo. E ela teve raiva. Raiva como nunca tivera antes, nem mesmo quando ele colocou as malas no carro e sumiu por entre as ruas e avenidas, deixando-a sozinha no apartamento sem saber como encarar a mãe e todo o resto do mundo. Lorena era tão nova. A vida era tão nova. E pegou tudo: caixa, retratos, xícara. Queimou, rasgou, quebrou. E jogou os restos no lixo, assim como havia feito com a sua vida há exatos 20 anos. E decidiu não mais lembrar tantos detalhes. E fechou os olhos e tentou dormir. E decidiu que a partir de então tudo seria diferente. Acordou assustada. Vestiu a primeira roupa que encontrou e saiu para o trabalho. No caminho avistou uma figura conhecida. Estava de costas e caminhava com a mesma lentidão de sempre. Os cabelos longos eram bagunçados pelo vento. Não. Não pode ser. Aquele caminhar parecia provocar Lorena; “olha, não adianta nem tentar me esquecer.” Desesperada, Lorena mudou a direção do carro e seguiu por entre ruelas apertadas. Já passara ali antes, mas fazia tanto tempo. Desceu do carro e apressou o passo. A chuva começou a cair. Lorena corria como nunca correra antes. Queria gritar, mas a voz lhe faltava. As lágrimas se misturavam às gotas de chuva. “Durante muito tempo em sua vida eu vou viver” – dizia aquele caminhar. Até que Lorena não agüentou mais. Parou. Ajoelhou-se no meio da rua e olhou o homem indo embora. Ele virou o rosto de lado e Lorena pode ver os mesmos olhos baixos desaparecerem mais uma vez. E permaneceu ali, ajoelhada por tempo indefinido, relembrando os detalhes que a deixava tão feliz, relembrando todos os momentos que viveu e os que poderia ter vivido, sonhando a família que teria, o casamento que não aconteceu o filho que não dormiu em seus braços. Enquanto isso a chuva continuava a cair e o homem desaparecia pela longa estrada. E Lorena viu o grande amor morrer ali, bem na sua frente. De novo. Amor tão grande, incapaz de ser esquecido. Amor que de tão grande chegava a doer. Que se perdia entre mil detalhes, todos, que só restava a Lorena relembrar. Levantou-se, voltou até o carro, deixou a música tocar no último volume e seguiu. Não tinha destino, assim como não tinha amor, assim como não tinha mais ninguém, assim como não tinha mais vida. O carro atravessou a estrada e sumiu no meio do oceano. A vida reduziu-se a quase nada. Mas quase nada também era mais um detalhe. E a vida se reduziu a nada. Nem mais detalhes e fim.
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