Peço desculpas a todas as pessoas que vivem no Haiti. Sei que o mundo não está sendo justo com vocês. Desde sempre. Não é fácil passar fome, viver na precariedade, na insegurança. Peço desculpas a todas as mães que perderam seus filhos. Desculpe-me as crianças abandonadas no escuro, na fome, na falta de um chão, de um abraço, de um conforto. Desculpe-me os homens que perderam suas companheiras, suas moradas. Peço desculpa ao povo haitiano que perdeu seu país, seu orgulho, sua dignidade. Peço desculpas pelo esquecimento, pelo abandono, pela falta de ajuda. Peço desculpas pela falta de cuidado com o mundo e por todas as dores que isto tem causado a vocês. Eu também estou sofrendo. Mesmo longe. Estou sofrendo ao ver cada rosto machucado, cada corpo sem vida apodrecendo nas ruas que não mais são ruas, que são pedaços. Pedaços de uma vida, fragmentos de uma história esquecida. Sinto uma dor a cada choro desesperado, a cada pedido de socorro. Mas sinto uma esperança muito grande a cada mão que é estendida e a cada pedra que é levantada. Sei que não mereço o perdão de vocês, haitianos. Sei que o mundo não merece. Mas também sei que seremos perdoados. O sofrimento nos torna, cada vez mais humanos, cada vez mais seres humanos. E esses sim são capazes de perdoar com a mais pura sinceridade. Mesmo aqueles que tanto mal lhes causou e que foram capazes de lhes tirar o pouco que tinham. Peço força a vocês. Peço, mesmo que seja difícil, que acreditem em Deus. Que confiem em um mundo melhor. Que confiem que, assim como vocês, outros seres humanos estão espalhados pelo mundo e estenderão a mão para ajudá-los. Peço perdão, mas peço também para todos que tem condições: ajudem. Não virem a cara. Ajudem. Não finjam que são imbatíveis, intocáveis. Vocês sabem que não são. Ajudem as crianças e seus pais. Lhes dê comida, água, um lar. Lhes dê amor e lhes mostre confiança. Não desistam deles. Não desistam de vocês. Não desistam de nós. Não desistam do mundo.Não desistam da vida.
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
Achados [3]
Estavam perdidos, mas agora estão depositados aqui.
A volta para a casa é sempre prazerosa. Pessoas no metrô. É estranho como não conheço ninguém, mas é interessante, pois com meia hora de observação posso traçar um perfil. Não sei se é correto, mas me deixo imaginar. Permito-me o dom da criação. Crio pessoas que não existem (ou existem?), mas que, no entanto, estão na minha frente. São de carne e osso. E pura ficção.
A volta para a casa é sempre prazerosa. Pessoas no metrô. É estranho como não conheço ninguém, mas é interessante, pois com meia hora de observação posso traçar um perfil. Não sei se é correto, mas me deixo imaginar. Permito-me o dom da criação. Crio pessoas que não existem (ou existem?), mas que, no entanto, estão na minha frente. São de carne e osso. E pura ficção.
Achados [2]
Estavam perdidos, mas agora estão depositados aqui.
Era um típico dia de outono.O Sol aparecia tímido no céu, o vento chegava de leve e como uma criança travessa bagunçava os nossos cabelos. Assim, o clima estava agradável e Belo Horizonte, como de costume, não parava. As largas ruas da capital mineira eram tomadas por veículos grandes ou pequenos, mas insistentemente barulhentos, e por pessoas dos mais diversos tipos que, ao andarem lado a lado, de forma muito apressada e com feições quase sempre cansadas, perdiam suas características especiais, tornando-se apenas a multidão que mais uma vez cortava as ruas da cidade. A impaciência era grande: motocicletas cortando carros de forma inconseqüente, buzinas disparadas sem motivos, homens e mulheres gritando uns com os outros de forma assustadora, mães correndo atrás e xingando as crianças choronas que insistiam em não obedecê-las, cachorros latindo, pássaros cantando, alarmes disparados... Realmente, Belo Horizonte não parava e o caos perturbador e rotineiro impedia aos que passavam de aproveitar o agradável dia de outono. Talvez, nem soubessem do outono. Talvez soubessem demais das horas...
Eu, a mais nova moradora de Belo Horizonte, me juntara a tantas outras pessoas e parada em um ponto estratégico, esperava pelo ônibus que me levaria até em casa. Sempre morei na tranqüilidade do interior de Minas e a movimentada vida de BH me assustava. Em seis meses de capital, jamais ouvira um bom dia quando saia para a aula. Sorrisos eram raros. Os moradores, por costume, medo ou sabe-se lá o que, se limitavam a caminhar sozinhos, preocupados com as sacolas e pastas que carregavam, com um fone em um dos ouvidos e o celular no outro. As pessoas, que em minha cidadezinha sempre apresentavam faces conhecidas, na grande cidade, para mim, não passavam de meros e arrogantes desconhecidos.
O dia continuava agradável e eu continuava a espera do ônibus, até que ele chegou vazio e com uma rapidez estonteante, encheu. Por sorte consegui um lugar para me sentar e como a viagem seria longa, resolvi brincar de adivinhar. Pessoas ao meu lado eram colocadas à prova em minha cabeça e os meus olhos, um tanto observadores, criavam perfis para cada um dos passageiros. Ao meu lado, um homem em seus quarenta anos, roupa formal, fisionomia triste e cansada, aparentava um mau humor e uma intolerância muito grande. Mera suposição. Grande surpresa. O ônibus lotado viajava com muitas pessoas de pé e esse mesmo homem que estava sentado, em um gesto leve, ofereceu-se para segurar as sacolas de uma mulher que estava em pé e não podia se apoiar em nenhum lugar, tamanho o peso que carregava. Meus olhos saltaram de espanto. Então, ainda havia gentileza na Belo Horizonte que se recusava a parar? Não só havia como se revelou naquele homem. Logo ele, que meus olhos insistiam em revelar-me nenhum pouco gentil. A partir daí, a viagem tornara-se familiar. Sentia-me dentro do ônibus daquela cidadezinha do interior, onde rostos conhecidos se ajudavam. Um sorriso se abriu tímido no canto de minha boca. Mas logo a frustração. Nenhum rosto familiar. Nenhum sorriso em troca, nem mesmo o do homem gentil. O ônibus parou, pessoas desceram e como sempre seguiram seus caminhos com a cabeça baixa. Naturalmente, Belo Horizonte não parava. Não parava para um agradável dia de outono e muito menos para uma menina do interior.
Era um típico dia de outono.O Sol aparecia tímido no céu, o vento chegava de leve e como uma criança travessa bagunçava os nossos cabelos. Assim, o clima estava agradável e Belo Horizonte, como de costume, não parava. As largas ruas da capital mineira eram tomadas por veículos grandes ou pequenos, mas insistentemente barulhentos, e por pessoas dos mais diversos tipos que, ao andarem lado a lado, de forma muito apressada e com feições quase sempre cansadas, perdiam suas características especiais, tornando-se apenas a multidão que mais uma vez cortava as ruas da cidade. A impaciência era grande: motocicletas cortando carros de forma inconseqüente, buzinas disparadas sem motivos, homens e mulheres gritando uns com os outros de forma assustadora, mães correndo atrás e xingando as crianças choronas que insistiam em não obedecê-las, cachorros latindo, pássaros cantando, alarmes disparados... Realmente, Belo Horizonte não parava e o caos perturbador e rotineiro impedia aos que passavam de aproveitar o agradável dia de outono. Talvez, nem soubessem do outono. Talvez soubessem demais das horas...
Eu, a mais nova moradora de Belo Horizonte, me juntara a tantas outras pessoas e parada em um ponto estratégico, esperava pelo ônibus que me levaria até em casa. Sempre morei na tranqüilidade do interior de Minas e a movimentada vida de BH me assustava. Em seis meses de capital, jamais ouvira um bom dia quando saia para a aula. Sorrisos eram raros. Os moradores, por costume, medo ou sabe-se lá o que, se limitavam a caminhar sozinhos, preocupados com as sacolas e pastas que carregavam, com um fone em um dos ouvidos e o celular no outro. As pessoas, que em minha cidadezinha sempre apresentavam faces conhecidas, na grande cidade, para mim, não passavam de meros e arrogantes desconhecidos.
O dia continuava agradável e eu continuava a espera do ônibus, até que ele chegou vazio e com uma rapidez estonteante, encheu. Por sorte consegui um lugar para me sentar e como a viagem seria longa, resolvi brincar de adivinhar. Pessoas ao meu lado eram colocadas à prova em minha cabeça e os meus olhos, um tanto observadores, criavam perfis para cada um dos passageiros. Ao meu lado, um homem em seus quarenta anos, roupa formal, fisionomia triste e cansada, aparentava um mau humor e uma intolerância muito grande. Mera suposição. Grande surpresa. O ônibus lotado viajava com muitas pessoas de pé e esse mesmo homem que estava sentado, em um gesto leve, ofereceu-se para segurar as sacolas de uma mulher que estava em pé e não podia se apoiar em nenhum lugar, tamanho o peso que carregava. Meus olhos saltaram de espanto. Então, ainda havia gentileza na Belo Horizonte que se recusava a parar? Não só havia como se revelou naquele homem. Logo ele, que meus olhos insistiam em revelar-me nenhum pouco gentil. A partir daí, a viagem tornara-se familiar. Sentia-me dentro do ônibus daquela cidadezinha do interior, onde rostos conhecidos se ajudavam. Um sorriso se abriu tímido no canto de minha boca. Mas logo a frustração. Nenhum rosto familiar. Nenhum sorriso em troca, nem mesmo o do homem gentil. O ônibus parou, pessoas desceram e como sempre seguiram seus caminhos com a cabeça baixa. Naturalmente, Belo Horizonte não parava. Não parava para um agradável dia de outono e muito menos para uma menina do interior.
Achados
Estavam perdidos,mas agora estão depositados aqui.
A cidade amanheceu dormindo. Ainda está escuro e chove muito lá fora. O vento sopra forte enquanto os moradores das ruas se encolhem sob os jornais úmidos e tentam, em vão, espantar o frio. Janelas e portas se mantém trancadas e o único barulho que se ouve é o dos pingos caindo sobre os telhados. As crianças dormem serenamente, as mães também dormem, mas preocupadas em planejar o dia que vai chegar com esta manhã. Os pais roncam alto, parecem não se preocupar com nada. A chuva continua forte e a enxurrada leva toda a sujeira das ruas que logo é substituída pelas folhas e flores que se desprendem das árvores. Os primeiros pássaros ensaiam um canto tímido, enquanto os mais preguiçosos continuam escondidos entre os galhos, em silêncio. Cães e homens disputam o pequeno espaço embaixo das marquises. O silêncio é então interrompido pelo primeiro barulho de motor. Um fusca velho segue em direção à estrada. O cheiro da chuva logo e apagado por um forte cheiro de café novo. A cidade, então, lentamente, acorda. O canto dos pássaros, agora, é uníssono e alto. As primeiras janelas se abrem, mas com o frio, logo são trancadas novamente. Algumas luzes já podem ser avistadas. Crianças choram enquanto as mães preparam o café da manhã. Televisões estão ligadas e os pais, sérios, prestam atenção às primeiras notícias do dia. A chuva continua forte. As portas são destrancadas e mulheres saem deslumbrantes em seus vestidos. A cidade é tomada pelo colorido das sombrinhas e guarda- chuvas. Vermelhos, amarelos, rosas. As ruas estão tomadas por rodas e sapatos. O silêncio não mais se ouve. Cães e homens são expulsos das marquises. Buzinas, gritos, música. A cidade que amanheceu dormindo já se encontra de pé.
A cidade amanheceu dormindo. Ainda está escuro e chove muito lá fora. O vento sopra forte enquanto os moradores das ruas se encolhem sob os jornais úmidos e tentam, em vão, espantar o frio. Janelas e portas se mantém trancadas e o único barulho que se ouve é o dos pingos caindo sobre os telhados. As crianças dormem serenamente, as mães também dormem, mas preocupadas em planejar o dia que vai chegar com esta manhã. Os pais roncam alto, parecem não se preocupar com nada. A chuva continua forte e a enxurrada leva toda a sujeira das ruas que logo é substituída pelas folhas e flores que se desprendem das árvores. Os primeiros pássaros ensaiam um canto tímido, enquanto os mais preguiçosos continuam escondidos entre os galhos, em silêncio. Cães e homens disputam o pequeno espaço embaixo das marquises. O silêncio é então interrompido pelo primeiro barulho de motor. Um fusca velho segue em direção à estrada. O cheiro da chuva logo e apagado por um forte cheiro de café novo. A cidade, então, lentamente, acorda. O canto dos pássaros, agora, é uníssono e alto. As primeiras janelas se abrem, mas com o frio, logo são trancadas novamente. Algumas luzes já podem ser avistadas. Crianças choram enquanto as mães preparam o café da manhã. Televisões estão ligadas e os pais, sérios, prestam atenção às primeiras notícias do dia. A chuva continua forte. As portas são destrancadas e mulheres saem deslumbrantes em seus vestidos. A cidade é tomada pelo colorido das sombrinhas e guarda- chuvas. Vermelhos, amarelos, rosas. As ruas estão tomadas por rodas e sapatos. O silêncio não mais se ouve. Cães e homens são expulsos das marquises. Buzinas, gritos, música. A cidade que amanheceu dormindo já se encontra de pé.
Para as longas horas de espera e solidão: escrever. Eis a solução
Enquanto o tempo não passa eu vou escrevendo...
Quatro e cinquenta. Restam apenas dez minutos. Logo será cinco horas e aí restará uma hora. A chuva cai. Lá fora os carros passam e jogam água nas pessoas que andam pelas calçadas. As senhoras passam com seu casacos e sombrinhas. As crianças brincam de pular as poças d'água que aparecem no caminho enquanto as mães, impacientes, juram doces e palmadas quando chegarem em casa. As ruas estão todas iluminadas e o cheiro do Natal se espalha por todo o ar. Que pena que aqui não neva. Se nevasse ia ser tão lindo! As ruas iluminadas estariam cobertas por um tapete branco e então, à noite, com o céu todo escuro, eu iria pensar que as nuvens caíram no chão, que o mundo virou de cabeça para baixo e agora eu estaria no céu, caminhando sobre todo aquele tapete branco de nuvens. As estrelas se confundiriam com os postes e luminárias acesas. As pessoas seriam anjos. Ah! Teríamos anjos louros, anjos ruivos, anjos negros. Todos tocando suas harpas e convivendo em harmonia. Mas aqui não neva. Aqui o céu não muda de lugar. Só vejo a chuva, as ruas iluminadas, as mulheres e suas sombrinhas, as crianças e as poças e as mães. Já passa das seis. Só mais uma hora enfim e fim.
Quatro e cinquenta. Restam apenas dez minutos. Logo será cinco horas e aí restará uma hora. A chuva cai. Lá fora os carros passam e jogam água nas pessoas que andam pelas calçadas. As senhoras passam com seu casacos e sombrinhas. As crianças brincam de pular as poças d'água que aparecem no caminho enquanto as mães, impacientes, juram doces e palmadas quando chegarem em casa. As ruas estão todas iluminadas e o cheiro do Natal se espalha por todo o ar. Que pena que aqui não neva. Se nevasse ia ser tão lindo! As ruas iluminadas estariam cobertas por um tapete branco e então, à noite, com o céu todo escuro, eu iria pensar que as nuvens caíram no chão, que o mundo virou de cabeça para baixo e agora eu estaria no céu, caminhando sobre todo aquele tapete branco de nuvens. As estrelas se confundiriam com os postes e luminárias acesas. As pessoas seriam anjos. Ah! Teríamos anjos louros, anjos ruivos, anjos negros. Todos tocando suas harpas e convivendo em harmonia. Mas aqui não neva. Aqui o céu não muda de lugar. Só vejo a chuva, as ruas iluminadas, as mulheres e suas sombrinhas, as crianças e as poças e as mães. Já passa das seis. Só mais uma hora enfim e fim.
Receita
Estou muito triste. Descobri que não nasci para cozinhar. Por mais boa vontade que tenha, não consigo cumprir à risca nenhuma receita. Por mais que esteja tudo lá, bem escrito, explicado, indicando como se faz, parece que uma força maior me empurra para o caminho contrário e me obriga a fazer de um jeito diferente. Mais uma vez me frustrei. Hoje, na tentativa de fazer um pão de queijo. Receita simples que eu não consegui cumprir. Um ovo a mais e a massa desandou. Era para o café, para impressionar as pessoas que amo. Era para me satisfazer, mas, mais uma vez, não deu certo. Então, enquanto mexia a massa com raiva, percebi que cozinhar não é nada além do que o reflexo de minha própria vida. O cheiro forte do queijo, o leite milimetricamente derramado e basta um ovo a mais para acabar com tudo. O mesmo ovo que é símbolo de vida. A chuva caia enquanto eu seguia na tentativa de acertar. A receita estava lá, me mandando fazer, me mostrando o caminho para a felicidade e eu simplesmente não consegui seguir. Um único caminho errado e minha vida se misturou àquela massa mole, de cheiro forte, gosmenta. E quanto mais eu afundava minhas mãos para alcançá-la, mais ela escorria por meus dedos. Então parei. Desisti. E tive raiva por desistir tão cedo. Uma última tentativa de reparar o erro. Um estrondo! A televisão queimou e junto com ela, a felicidade mais uma vez fugiu. Por que não segui a receita? Mas a chuva parou. O calor do forno alimentava a esperança. E aí deu certo. O pão de queijo deu certo. A vida deu certo. Cresceu, tomou forma, adquiriu consistência, cor... Mas faltou o sal. Eu sabia. Continuou incompleta, longe. E eu só dando voltas, desviando, fugindo dela. Mas por que eu não segui a receita? Porque não existe receita. Eu sou a receita. Errada. Errando. Para acertar. Um dia, quem sabe. Não nasci para cozinhar, mas me desculpe, tenho um enorme talento para a felicidade. Só não sei como chegar lá. Ainda.
domingo, 10 de janeiro de 2010
Mudanças... não feitas
Pensei em mudar o nome do blog para "depósito de textos" ou "depósito das palavras". Pensei que "Jornalística" não era o nome ideal para o tipo de texto que estou postando. Na verdade, quando criei esse blog a proposta era outra. Mas gosto dele assim. Gosto dos textos que estão nele, embora nunca tenha coragem de mostrá-los a alguém. Prefiro pensar que estão num depósito mesmo. Esquecidos. Desconhecidos. Quanto a mudança do nome, resolvi não colocá-la em prática. Entendi o que ela quer dizer. Está clara.
Clarice,
Estou lendo a bela biografia de Clarice Lispector (Clarice,) escrita por Benjamin Moser. Enquanto passava pelos capítulos que remontam a trajetória dessa fabulosa escritora, uma das minhas prediletas, recordei um texto que fiz há algum tempo sobre minha relação com Clarice. Não me lembro muito bem, mas talvez tenha escrito isso quando acabei de ler, pela milésima vez, o conto “Felicidade Clandestina”, um dos mais bonitos, simples e sinceros que já li.
Clarice caiu em minhas mãos como as folhas caem das árvores no outono: tão naturalmente que nem percebi. Quando dei por mim já estava tomada pela tal “felicidade clandestina” que a frágil menina do Recife carregava envolvida em seus braços. Fui arrebatada. Aquela história me fascinou de tal forma que não conseguia mais parar de ler. E assim seguiu. Lia as crônicas, os contos, os romances, mas com uma dúvida sempre presente em minha mente: quem será a menina/mulher que de forma tão simples conseguia complicar as coisas mais rotineiras da vida humana? Como já disse, Clarice veio até mim de forma natural. Conhecia Clarice pelos livros que escolhia, entusiasmada, nas estantes. Nunca a tinha visto. E lendo, tinha uma possível imagem do que seria Clarice. Uma forma disforme. Em determinadas histórias tinha a certeza de lidar com uma mulher madura, de experiências bem definidas. Mas, ao mudar de parágrafo, aquela imagem se desfazia rapidamente. A mulher madura dava lugar a uma pequena menina. Sofrida. E como sofria! E como tinha pena daquela menina! Mas, subitamente, a menina também sumia. O sofrimento também sumia. Clarice, então, parecia uma página em branco prestes a ser preenchida. Como? Não tinha a menor idéia. E por muito tempo preferi assim. Não conhecer Clarice. Talvez se olhasse seu retrato desvendaria a mulher, a escritora, o mistério. E percebi que era muito melhor construir uma Clarice através das pistas que eu encontrava em seus textos. Era como se um ponto de interrogação ou qualquer palavra olhassem para mim e me dissessem: “olha sou eu. Me desvende, me ache.”Mas eu nunca achei. Não de forma precisa. Seria ela a menina que amava os livros, ou a senhora perdida no Maracanã? A menina que conversava com as galinhas ou a pobre mulher que foi atropelada? Clarice era tudo aquilo. Então eis que vejo o retrato daquela mulher que sempre me chamou a atenção. E assim como a “felicidade clandestina” havia me arrebatado, aqueles olhos faziam o mesmo. Não olhavam. Fuzilavam. Era a mulher. Era a menina. Era triste. Serena. Forte. Não consegui identificar. Era como se aquela foto olhasse para mim e risse. “Não é possível. Sou eu!”. Mas ainda não sei quem era. Assim como seus textos, sua fisionomia gostava de brincar. Hora revelava tudo, hora escondia. E assim Clarice vai permanecer para mim. Forma. Disforme.
Salve Clarice Lispector
Clarice caiu em minhas mãos como as folhas caem das árvores no outono: tão naturalmente que nem percebi. Quando dei por mim já estava tomada pela tal “felicidade clandestina” que a frágil menina do Recife carregava envolvida em seus braços. Fui arrebatada. Aquela história me fascinou de tal forma que não conseguia mais parar de ler. E assim seguiu. Lia as crônicas, os contos, os romances, mas com uma dúvida sempre presente em minha mente: quem será a menina/mulher que de forma tão simples conseguia complicar as coisas mais rotineiras da vida humana? Como já disse, Clarice veio até mim de forma natural. Conhecia Clarice pelos livros que escolhia, entusiasmada, nas estantes. Nunca a tinha visto. E lendo, tinha uma possível imagem do que seria Clarice. Uma forma disforme. Em determinadas histórias tinha a certeza de lidar com uma mulher madura, de experiências bem definidas. Mas, ao mudar de parágrafo, aquela imagem se desfazia rapidamente. A mulher madura dava lugar a uma pequena menina. Sofrida. E como sofria! E como tinha pena daquela menina! Mas, subitamente, a menina também sumia. O sofrimento também sumia. Clarice, então, parecia uma página em branco prestes a ser preenchida. Como? Não tinha a menor idéia. E por muito tempo preferi assim. Não conhecer Clarice. Talvez se olhasse seu retrato desvendaria a mulher, a escritora, o mistério. E percebi que era muito melhor construir uma Clarice através das pistas que eu encontrava em seus textos. Era como se um ponto de interrogação ou qualquer palavra olhassem para mim e me dissessem: “olha sou eu. Me desvende, me ache.”Mas eu nunca achei. Não de forma precisa. Seria ela a menina que amava os livros, ou a senhora perdida no Maracanã? A menina que conversava com as galinhas ou a pobre mulher que foi atropelada? Clarice era tudo aquilo. Então eis que vejo o retrato daquela mulher que sempre me chamou a atenção. E assim como a “felicidade clandestina” havia me arrebatado, aqueles olhos faziam o mesmo. Não olhavam. Fuzilavam. Era a mulher. Era a menina. Era triste. Serena. Forte. Não consegui identificar. Era como se aquela foto olhasse para mim e risse. “Não é possível. Sou eu!”. Mas ainda não sei quem era. Assim como seus textos, sua fisionomia gostava de brincar. Hora revelava tudo, hora escondia. E assim Clarice vai permanecer para mim. Forma. Disforme.
Salve Clarice Lispector
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