domingo, 10 de janeiro de 2010

Clarice,

Estou lendo a bela biografia de Clarice Lispector (Clarice,) escrita por Benjamin Moser. Enquanto passava pelos capítulos que remontam a trajetória dessa fabulosa escritora, uma das minhas prediletas, recordei um texto que fiz há algum tempo sobre minha relação com Clarice. Não me lembro muito bem, mas talvez tenha escrito isso quando acabei de ler, pela milésima vez, o conto “Felicidade Clandestina”, um dos mais bonitos, simples e sinceros que já li.

Clarice caiu em minhas mãos como as folhas caem das árvores no outono: tão naturalmente que nem percebi. Quando dei por mim já estava tomada pela tal “felicidade clandestina” que a frágil menina do Recife carregava envolvida em seus braços. Fui arrebatada. Aquela história me fascinou de tal forma que não conseguia mais parar de ler. E assim seguiu. Lia as crônicas, os contos, os romances, mas com uma dúvida sempre presente em minha mente: quem será a menina/mulher que de forma tão simples conseguia complicar as coisas mais rotineiras da vida humana? Como já disse, Clarice veio até mim de forma natural. Conhecia Clarice pelos livros que escolhia, entusiasmada, nas estantes. Nunca a tinha visto. E lendo, tinha uma possível imagem do que seria Clarice. Uma forma disforme. Em determinadas histórias tinha a certeza de lidar com uma mulher madura, de experiências bem definidas. Mas, ao mudar de parágrafo, aquela imagem se desfazia rapidamente. A mulher madura dava lugar a uma pequena menina. Sofrida. E como sofria! E como tinha pena daquela menina! Mas, subitamente, a menina também sumia. O sofrimento também sumia. Clarice, então, parecia uma página em branco prestes a ser preenchida. Como? Não tinha a menor idéia. E por muito tempo preferi assim. Não conhecer Clarice. Talvez se olhasse seu retrato desvendaria a mulher, a escritora, o mistério. E percebi que era muito melhor construir uma Clarice através das pistas que eu encontrava em seus textos. Era como se um ponto de interrogação ou qualquer palavra olhassem para mim e me dissessem: “olha sou eu. Me desvende, me ache.”Mas eu nunca achei. Não de forma precisa. Seria ela a menina que amava os livros, ou a senhora perdida no Maracanã? A menina que conversava com as galinhas ou a pobre mulher que foi atropelada? Clarice era tudo aquilo. Então eis que vejo o retrato daquela mulher que sempre me chamou a atenção. E assim como a “felicidade clandestina” havia me arrebatado, aqueles olhos faziam o mesmo. Não olhavam. Fuzilavam. Era a mulher. Era a menina. Era triste. Serena. Forte. Não consegui identificar. Era como se aquela foto olhasse para mim e risse. “Não é possível. Sou eu!”. Mas ainda não sei quem era. Assim como seus textos, sua fisionomia gostava de brincar. Hora revelava tudo, hora escondia. E assim Clarice vai permanecer para mim. Forma. Disforme.

Salve Clarice Lispector

Um comentário:

  1. Clarice não tem forma e eu preciso de formas. Eu acho tão sublime o jeito que os amantes da literatura têm de se referir a ela... É o mais que inatingível. Pra mim até demais. Admiro.

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