sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Hoje é o último dia do ano

O último dia do ano é o dia mais triste do mundo, porque, diferente dos outros dias, ele não é vivido. Ele simplesmente é esquecido por todos. No último dia do ano, passamos o dia todo ou vivendo os outros dias que passaram ou vivendo (sonhando) os dias que virão. Assim, prefiro dizer que o ano não tem 365 dias, mas 364 ou 366. Depende se você vive no passado ou no futuro.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Em casa, ao som de Nara Leão

Ao som de Nara Leão vou escrevendo pela tarde. Estou, enfim, em casa. Tenho de volta meu quarto, meus cadernos, minha TV que insiste em falar enquanto durmo. Mas é isso mesmo o que quero? Sinto vergonha ao pensar que não. Não me reconheço mais nos livros na estante, na cortina queimada por uma vela que acendi para o anjo da guarda. Não me reconheço mais nas fotos na parede. Mudei tanto assim? Não me reconheço mais nos velhos conhecidos que se lembram de quando eu era pequena. Não me reconheço mais na filha de fulana, neta de fulana. Onde estou, estou sozinha (pela primeira vez sou eu) e tenho vergonha em pensar que gostei de ser eu. Escolho a comida que tem no restaurante e não mais como porque é bom para a saúde. Se passo mal, tomo remédio. Dormir não tem hora. Enfrento a fila do banco, passo na padaria, convido os amigos para uma rodada de cerveja e uma pizza ao som de Janis Joplin e tudo está certo. Invento minha própria diversão. Leio cinco livros de uma vez. Tomo banho quente e abro a geladeira. Não dou o recado. Penso em seguir em frente. E ao som de Nara até penso em me perder pela cidade. E só penso: até um dia, até talvez, até quem sabe.

sábado, 13 de novembro de 2010

Obrigado, não

Quatro meses sem escrever nada pode parecer nada para muitos, mas muito para mim. O problema é que estou escrevendo, mas não o que quero. É pesado o ritmo de estágio e faculdade. Estou produzindo mais para os outros do que para mim mesma. Mas, essa não é a proposta da literatura e até mesmo do jornalismo? Um subjetivismo coletivo. Escrevo o que penso e sinto para os outros. Posso até ter escrito o que penso, mas o que sinto... Dificilmente, até porque, o tempo para sentir é curto. Mas, como aprendi um dia e ouvi da escritora Marina Colassanti, não podemos ler apenas porque gostamos e, mais ainda, ler apenas o que gostamos. A obrigação também faz parte da vida. Admito que na hora fiquei um pouco decepcionada, mas agora entendo e faço minhas as palavras dela. Não posso escrever apenas o que gosto. A obrigação também faz parte. Mas aí, modifico o pensamento: posso sim escrever, justamente porque gosto. Se não gosto, para quê escrever? Por que tem a obrigação? Sinto muito, essa eu não engulo. E aí fico imaginando como é escrever por obrigação. E descubro que é isso que faço agora, afinal, são quatro meses sem publicar nada. Já passa de obrigação. Mas é uma obrigação com gosto. O mesmo é o caso do jornalismo. Escrevi várias matérias. Todas por obrigação, pois o jornal tinha que sair. Mas também tinha gosto ali. Gosto em escolher cada palavra que usei em meus textos. Gosto em ver sentimentos, trabalho e esforço, tudo reduzido a palavras. Aí, descobri que obrigação e gosto podem andar juntos e que é tudo muito mais fácil quando andam juntos. E aí descobri que estou cansada de escrever por obrigação, então coloco o ponto final e termino tudo aqui, antes que obrigação e gosto briguem e a obrigação passe a andar sozinha.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Por amor

Desligou a TV e foi para a cozinha preparar o almoço. Estava chocada com as notícias do dia. Um homem bomba cometera um atentado no Afeganistão e matara pelo menos 300 inocentes. O atentado se justificou pelo amor a Deus. No Brasil, um homem fora preso por matar a mulher e a filha a facadas em um apartamento na zona sul do Rio de Janeiro. O motivo: amor.
Ainda estava acabando de fazer o almoço quando o marido chegou em casa. Estava contente e trazia nas mãos uma caixa de papelão com vários furos nas laterais e na parte superior. Desligou o fogão e, ao chamado do marido, também movida por certa curiosidade, foi ver o que tinha dentro da caixa. Será que era um presente para ela? Mas o que seria? Não conseguia imaginar. O marido não era lá um homem tão romântico e presente àquela altura... Tudo bem que era uma boa esposa. Amava e respeitava o marido, cuidava da casa, era fiel... Então a caixa fora aberta. Surpresa. Lá dentro, encolhido e tímido, o pássaro preto se escondia no fundo da caixa. “- Não é lindo?”. E como falar ao marido que não? Ela não era muito chegada a bichos, mas olhando o pássaro lá no fundo da caixa, bem que ele tinha seus encantos. Trataram logo de arrumar um lugar para o bichinho. Ele não ficava preso, pois não se adaptou bem à gaiola. O amor do marido pelo pássaro cresceu. Era todo cuidados e mimos. Chegava do trabalho e corria direto para as asas do pássaro. Punha comida, dava água, banho, cantavam juntos... Depois jantava, dava um beijo na mulher e ia assistir TV. O pássaro pousava ao lado do sofá e por lá ficava até a hora de dormir. E a relação com a mulher só piorava. Era pior do que se ele tivesse uma amante. Dividir a atenção do marido com um pássaro. E ela odiava o animal a cada dia. Nunca sentira isso antes. Ela que sempre fora tão meiga tão cheia de amores. Incapaz de fazer mal a menor das criaturas. E via seu casamento se deteriorar a cada dia. Tentou sumir com o bicho enquanto o marido não estava em casa. Ia dizer que fugira pela janela enquanto ela tomava banho. Mas o animal era esperto e deu logo um jeito de se fazer de coitado. O marido brigou com ela. Quase saiu de casa e a ideia de sumir com o pássaro preto é que sumiu. A saída para os problemas era a boa convivência. Mas a ave, com aqueles olhos de piedade, por dentro, era pura vingança. Quando o marido saía para o trabalho a crueldade começava. E tinha início o espetáculo. A ave atacava a mulher. Corria atrás dela por toda a casa. Bicava suas pernas, seus braços, seu cabelo. A mulher gritava. Chamava os vizinhos e até mesmo estranhos que passavam pela rua. Pedia para que prendessem a ave, dessem sumiço nela, mas o pássaro era só simulação. Conquistava o carinho de todos e reinava absoluta no lar que a mulher tanto lutara para construir. Quando o marido chegava era para a ave que ele corria. Acusava a mulher de fazer mal ao indefeso bicho. Ela, então, passava por louca e a ave, por dentro, ria daquela pobre mulher. E todo dia era a mesma cena. Ataques, acusações. A mulher se reduzia a nada dentro de sua própria casa. Até que um dia surgiu a oportunidade perfeita. Ela também sabia ser cruel. Sabia defender o que era seu. Foram viajar. Insistiu para que o marido levasse o pássaro também. Pela primeira vez colocaram-no em uma gaiola. A gaiola fora trancada dentro do porta malas. O pássaro viajou tranqüilo. Sabia do amor do homem por ele. Chegaram ao destino, a mulher jogou todas as suas armas, bem como fazem as mulheres quando o que está em jogo é a família, o lar, a dignidade. E desse modo fez o homem esquecer o pássaro. Esse ficou dias trancado na escuridão do porta malas. Não tinha água nem comida. Teve medo da solidão e da morte. Aos poucos, fraco, foi se definhando. Quando o homem se lembrou já era tarde. Estava morto. A mulher, simulando surpresa, chorava com os olhos e ria com toda a sua alma. Culpou o marido. Como pôde ser tão distraído? E quando tivessem filhos? Não os deixariam sozinhos com ele. O veneno escorria por seus lábios, mas o gosto da vitória era amargo. Olhando para o pássaro sem vida, jogado pelo canto, triunfou, mas logo veio a culpa. Em seguida a pena. Nunca conseguiria retomar o casamento com essa mentira. Como podia ser tão cruel? Pobre ave. Mas foi por amor. E por amor também se mata. Tratou logo de enterrar a ave, consolar o marido e continuar a vida.

terça-feira, 13 de julho de 2010

De quem é o poder?

"E agora - agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas - mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim." (LISPECTOR, p. 106)

Final de tarde, ainda um pouco tonta fechei o livro. "Tudo começa e termina com um sim" - pensei. Troquei as páginas de Clarice Lispector por um passeio inquietante entre os tantos canais da TV. Foi então que uma imagem me chamou a atenção e, mais do que eu via através da tela, o que ouvia é que me prendia ali. Era uma entrevista da atriz e diretora francesa Fanny Ardant a um canal de TV brasileiro. Era uma mulher muito bonita e inteligente e, em um francês que eu mal entendia, falava sobre cinema, sua vida e sentimentos. Me interessei e pousei meu corpo comodamente em frente a televisão. E por ali permaneci por horas a tentar desvendar outra língua. Me recusava a ler as legendas e pouco entendia daquilo tudo. Foi quando, por um descuido, meus olhos passaram brevemente pelas letras brancas abaixo da imagem de Fanny. Um susto. Todas aquelas letras diziam: " Eu lia como se droga: para esquecer a vida". Aquela única frase que entendi completamente por um descuido me chocou de forma intensa. Era como se tivesse apanhado. Um tapa na cara e eu fiquei ali parada, sem nenhuma reação, em frente a TV. Ela continuava a falar, tranquila. Eu, inquieta. Desliguei a TV. "Lia como se droga" era a única coisa em que conseguia pensar. E aquilo me chocou pela forma agressiva que assumia. Me chocou pela verdade pura, simples, direta. A atriz, com essa frase, respondia ao brasileiro quando ele a questionou se durante a juventude ela lia muito. Eu, então, me reconheci ali. Sempre fui atraída pelo jogo de perder e achar que os autores tanto gostam. E lia tudo. Sem medo. E, ao ouvir aquela frase, percebi que era pelo mesmo motivo. Encontrava nos livros a fuga. Quando me deparava com personagens felizes, minha felicidade se multiplicava. Esquecia os problemas para ser feliz com eles. E se estavam tristes, minha tristeza era pequena. E um sentimento de solidariedade me invadia. Lutava, chorava, corria, aprendia. Era outro mundo. Um mundo que não conhecia completamente. Um submundo, um lugar escuro, que me oferecia sentimentos ilícitos. Um mundo de novas possibilidades, novos caminhos e que, para mim, era tudo o que eu queria ter.
Mas aí lembrei-me de uma música que dizia que "os livros não são sinceros". E aquilo nunca ficou claro para mim. Até aquele instante. Devemos aproveitar as oportunidades que a leitura nos oferece, mas não devemos nos prender a ela. Devemos procurar essas oportunidades não só nas páginas de livros, mas no mundo. Os livros podem ser amigos, mas também sabem ser cruéis. Porque são feitos inteiramente por seres humanos. Quer maior crueldade do que essa? E são formados por palavras, pela linguagem. E a linguagem é inteiramente humana. Barthes disse que a língua é cruel, que condiciona e domina o homem. O homem que sabe usá-la, consequentemente domina outros homens ou, pelo menos, pensa que domina. Mas a verdade é que todos somos dominados por ela. Não só o ato da leitura pode ser comparado ao de se drogar. O de escrever também. Ao escrever o autor cria um mundo que não é o que ele realmente vê. E que nunca poderá ser, pois a linguagem, por mais que tente, nunca chegará perto do real. Então, mais uma vez ela nos engana e nos faz acreditar que aquilo que escrevemos é real, quando, nada mais é, do que apenas uma parte do real. Mas Barthes também afirma que a literatura é a única forma de salvar o homem da arbitrariedade da língua, justamente porque através dela é que temos contato com outros mundos, outras realidades. Mas aí ouço novamente a canção que diz que "os livros não são sinceros" e sou obrigada a concordar com ela. E também concordo com Barthes. Os livros nos dão tudo. Nos oferecem a oportunidade de, pelo menos por um instante, esquecer o que está errado em nossas vidas, nos dão a oportunidade do renascimento, de viver outras vidas, que sao renovadas a cada página que viramos, a cada palavra. Mas são traiçoeiros, porque a nova vida se esgota ali, no último ponto. E dessa vez, não oferecem a oportunidade da escolha e nem nos preparam para isso. Com aquele ponto atiram em nós e definem o fim daquela vida que achávamos ser nova. E assim permanecemos na constante ilusão de que estamos no poder porque temos a língua como aliada. Clarice dizia que a palavra era seu domínio sobre o mundo. E agora questiono se realmente temos esse domínio. Posso mudar o mundo com palavras, é claro. Mas, será mesmo que eu estou no comando? Se leio e escrevo como me drogo, para fugir, será mesmo que tenho esse poder? Ao mesmo tempo que escrevo cartas para amigos e falo sobre flores, posso denunciar mazelas e torturas. Posso calar a censura, mas, ao mesmo tempo, tenho que acreditar nas flores, do contrário, a censura me cala. Então percebo que somos todos dependentes das palavras, da língua. "Minha pátria é a minha língua". Estou sujeito a ela, mas nela também encontro a liberdade. Se "os livros não são sinceros" é porque a língua não o é. É porque o homem não o é. "De quem é o poder? Às vezes você me domina pensando que eu sou teu dono. Me dê poder e eu te mostro o mais inteiro dos sonhos".



quarta-feira, 30 de junho de 2010

Jornalistica

Transcrever talvez seja o maior trabalho de um jornalista. Ficar ali, horas a fio ouvindo a fala do outro, buscando entender e depois de tanto repetir, de tanto escutar, já ser capaz de dizer tudo de cabeça. E nesse momento você assume a fala do outro. Utiliza as palavras do outro. Vira outro. Mas o que é o jornalismo se não um se desfigurar a cada instante? Fingir que não é você? O que escrevo em minhas matérias não sou eu. Mas também não é o outro, pois as palavras foram escolhidas por mim a partir das palavras que o outro me disse. Então, ser jornalista é ser eu e ser o outro ao mesmo tempo. É, ao mesmo tempo, ser ninguém. Eis o desafio. Será que estou preparada para isso? Logo eu, que me sinto tão confortável em meu próprio papel, mesmo quando não me entendo. Mas daí se atrever a ser o outro, de contar a história do outro? Mas é disso que gosto. De não me sentir ali, mas me sentir ali mais do que qualquer coisa. Dizer aos outros o que aquele outro me disse com as minhas palavras. Confuso? Sedutor. E de repente vejo minha vida ali, num papel secundário, na vida dos outros. Dos outros tantos que dependem da minha vida para descobrirem o que se passa no mundo. O que se passa com o mundo. E de papel secundário passo a protagonista. E uma vergonha tão grande toma conta de mim e nessa hora, eu me escondo atrás do outro. Atrás de Marias, Cristinas, Conrados. Atrás de personagens que devem ser tão mais interessantes e tão menos tímidos. São histórias que não vivi. Mas contei e, ao contar, vivi. Então eu deixo de ser aquilo que sinto e que vivo. Conto histórias das quais não sei o final. Até me comovo, mas finjo que nada sinto. E continuo a andar. E me sinto um grande dicionário. Procuro em mim as melhores palavras para escrever as palavras do outro. Procuro em minhas páginas as melhores palavras para definir os sentimentos do outro. Acho em mim o outro que já se perdeu há muito tempo. E faço uma doação. Dou de presente esse outro aos outros que compram minhas palavras. E assim, me acho novamente. Mas a cada vez que me acho, me distancio um pouco mais de mim. Porque a cada vez que me acho, já deixei de ser eu e já me transformei em mim mais o outro. E isso é o jornalismo.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Contos II

Alguma semelhança é mera coincidência.

Lorena chegou mais cedo em casa. Conseguira terminar todas as laudas e agora podia deitar em sua cama e dormir até o dia seguinte. Tomou um banho quente e rápido, colocou o pijama de flanela azul e as meias novas. Prendeu os cabelos loiros e encaracolados com o elástico que estava em cima da mesa de cabeceira e deitou-se na cama. Fechou os olhos por longos instantes, mas o sono não vinha. Enquanto os olhos permaneciam fechados, por pura insistência, apenas uma imagem aparecia no escuro. Era ele. Fazia tanto tempo. Tempo suficiente para esquecer, mas Lorena era estupidamente fraca. A mesma calça desbotada, a camisa sem passar, os cabelos longos e negros, a barba por fazer. No rosto o mesmo sorriso de lado ora escondia, ora mostrava os dentes brancos. Os mesmos olhos baixos, calados e tímidos. Sim, era ele. Lorena abriu os olhos rapidamente. Não queria lembrar. Justo agora que estava tão bem, que conseguira viver a vida de forma tranqüila. Que estava novamente empregada, ganhando bem e pensando até em comprar um novo apartamento e deixar as lembranças para trás. Agora não. Correu até a cozinha e pegou a garrafa de vodca que estava dentro da geladeira. Ao abrir o armário para pegar o copo encontrou a velha xícara que ele tanto gostava. E lembrou-se do café amargo que ele odiava, mas mentia gostar só para agradá-la. Fechou os olhos enquanto tocava toda a extensão da xícara. Parou em um ponto onde havia uma rachadura. Cortou a ponta do dedo como sempre acontecia, mas dessa vez não havia ninguém para cuidar do corte e lembrar o quanto Lorena era manhosa. Deixou a xícara sobre a mesa e voltou ao quarto. Abriu o armário e puxou uma caixa amarela onde se lia 1970. De dentro da caixa surgiram fotos antigas nas quais Lorena usava o vestido que a mãe sempre odiara, mas que ele adorava. A barriga já crescida era envolvida por mãos firmes e carinhosas. Estava acompanhada do mesmo sorriso de lado e a barba por fazer. Eram felizes. No fundo da caixa, um envelope escondia as belas palavras que ele sempre enviava. Os erros de português ficavam pequenos se comparados ao grande amor que aquelas palavras mal escritas exalavam. Na última carta, um pedido de desculpas era acompanhado por um sapato de bebê vermelho, que nunca seria usado. E Lorena chorou. Chorou tanto que as lágrimas molharam o papel já amarelado pelo tempo. E ela teve raiva. Raiva como nunca tivera antes, nem mesmo quando ele colocou as malas no carro e sumiu por entre as ruas e avenidas, deixando-a sozinha no apartamento sem saber como encarar a mãe e todo o resto do mundo. Lorena era tão nova. A vida era tão nova. E pegou tudo: caixa, retratos, xícara. Queimou, rasgou, quebrou. E jogou os restos no lixo, assim como havia feito com a sua vida há exatos 20 anos. E decidiu não mais lembrar tantos detalhes. E fechou os olhos e tentou dormir. E decidiu que a partir de então tudo seria diferente. Acordou assustada. Vestiu a primeira roupa que encontrou e saiu para o trabalho. No caminho avistou uma figura conhecida. Estava de costas e caminhava com a mesma lentidão de sempre. Os cabelos longos eram bagunçados pelo vento. Não. Não pode ser. Aquele caminhar parecia provocar Lorena; “olha, não adianta nem tentar me esquecer.” Desesperada, Lorena mudou a direção do carro e seguiu por entre ruelas apertadas. Já passara ali antes, mas fazia tanto tempo. Desceu do carro e apressou o passo. A chuva começou a cair. Lorena corria como nunca correra antes. Queria gritar, mas a voz lhe faltava. As lágrimas se misturavam às gotas de chuva. “Durante muito tempo em sua vida eu vou viver” – dizia aquele caminhar. Até que Lorena não agüentou mais. Parou. Ajoelhou-se no meio da rua e olhou o homem indo embora. Ele virou o rosto de lado e Lorena pode ver os mesmos olhos baixos desaparecerem mais uma vez. E permaneceu ali, ajoelhada por tempo indefinido, relembrando os detalhes que a deixava tão feliz, relembrando todos os momentos que viveu e os que poderia ter vivido, sonhando a família que teria, o casamento que não aconteceu o filho que não dormiu em seus braços. Enquanto isso a chuva continuava a cair e o homem desaparecia pela longa estrada. E Lorena viu o grande amor morrer ali, bem na sua frente. De novo. Amor tão grande, incapaz de ser esquecido. Amor que de tão grande chegava a doer. Que se perdia entre mil detalhes, todos, que só restava a Lorena relembrar. Levantou-se, voltou até o carro, deixou a música tocar no último volume e seguiu. Não tinha destino, assim como não tinha amor, assim como não tinha mais ninguém, assim como não tinha mais vida. O carro atravessou a estrada e sumiu no meio do oceano. A vida reduziu-se a quase nada. Mas quase nada também era mais um detalhe. E a vida se reduziu a nada. Nem mais detalhes e fim.

Contos

É engraçado, agora dei para escrever contos. Não sei se são bacanas ou se vão ser entendidos, o que importa é que estão aqui. Aproveitem.


Estava sozinho em casa. A televisão ligada era a única companhia, a única forma de vida dentro da sala escura, pois nem ele achava que estava vivo mais, tamanha era a solidão. Mas, em um último sinal de sua condição humana, sentiu fome. Despertou em um impulso só. Não conseguia mais ouvir o que a bela mulher comentava na televisão. Só ouvia o rude barulho que vinha de dentro de si. Era tão forte que chegava a doer. Então se levantou e foi até a cozinha. Acendeu a luz e ficou um tempo parado, observando toda aquela bagunça. A louça acumulada dos dias anteriores ocupava todo o espaço da pia. Um pedaço de lasanha se decompunha em um canto da mesa enquanto uma barata passava apressada entre copos e garfos. Passado o asco, esqueceu-se da cena e dirigiu-se até o armário. A porta rangeu, ou seria o seu atestado de vida que se manifestava através da fome? Não importava mais quando viu uma coisa surpreendente. Ali dentro do armário quase vazio, entre um pacote de biscoitos já aberto e um vidro de geleia estava um panetone. Um panetone, grande, novinho, dentro de uma linda embalagem e amarrado com fita vermelha. Ficou feliz. Ia saciar a fome e voltar para a solidão da sala, onde a mulher da televisão insistia em falar. Pegou uma faca para cortar um suculento pedaço, mas de repente, em um impulso maior do que o que lhe enviou até a cozinha, parou. Ficou observando aquele panetone dentro do armário. E então voltou até a sala e percebeu que se esquecera de montar a árvore de natal. Olhou pela janela e confirmou que os vizinhos também se esqueceram de enfeitar as casas. Foi aí que ouviu na televisão a pior notícia de todos os tempos: Ainda era Março. Março repetiu bem alto. Mas como o panetone estava no armário se ainda não era natal? Pegou o embrulho para verificar a data de validade. Já devia estar velho, meu Deus, a que ponto chegou. Mas era novo. Havia sido fabricado há pouco tempo e, ao abrir o pacote, sentiu o cheiro das frutas cristalizadas. O cheiro do Natal. Mas não havia natal. Então perdera a fome, a mesma condição que ainda o fazia humano. E tentou entender. Quando era menino e ainda morava com a avó, o panetone na mesa indicava que a família se reuniria para comemorar a data tão especial. Encontraria os primos, tias e tios que não via há muito tempo. Ganharia presentes e cantaria canções especiais. Depois, sairia com a avó para assistir a missa e enquanto o padre rezava, brincaria com as outras crianças do lado de fora da igreja. Passada a data especial, a rotina voltaria a acontecer. O pai voltaria a beber e a bater na mãe em seus ataques de fúria. Seria mais uma vez motivo de deboches na escola e passaria o resto dos dias a sonhar com a data tão especial novamente. Em que, pelo menos uma vez, faria parte de uma família. Em que, pelo menos uma vez, seria importante e lembrado por alguém. Mesmo que fosse de mentira. Mas aquele panetone indicava que tudo se acabara. A estratégia capitalista de oferecer o produto a qualquer hora e a qualquer dia do ano banalizara o que para ele representava o único momento de vida. E assim, fora obrigado a retornar à condição animalesca de sua triste trajetória. Dessa vez, para sempre. Sem válvula de escape uma vez por ano. Sem fingir, uma vez por ano, que era feliz. Que fazia parte de um lugar e que fazia falta nesse lugar. Num acesso de fúria jogou o panetone contra a parede. Chorou como uma criança medrosa. Sentiu vergonha e se sentiu pequeno. Fora engolido mais uma vez. Parado, olhando para o panetone no chão teve a ideia que o tiraria daquela condição triste e sozinha que sempre fora obrigado a aceitar. Não perderia mais uma vez. Seria astuto e revidaria o próprio destino. Se a indústria lhe dava panetone todos os dias, todos os dias seriam natal. E ele então poderia viver o belo dia durante todos os dias do ano. Armaria a árvore, compraria presentes e chamaria alguns conhecidos para jantar. E assim o fez. Mas não aconteceu. As pessoas se afastaram mais. Foi chamado de louco, pensaram que havia voltado a beber. Chamaram os médicos e ele foi levado. Ainda tentava convencer a enfermeira de que era natal, de que haveria uma grande festa, mas ninguém queria ouvir. Aplicaram-lhe uma injeção e o jogaram em um quarto escuro. Então descobriu que não poderia mudar o destino e que a vida havia de ser assim. Recolheu-se à sua insignificância e, chorando, fechou os olhos. E rezou para que nunca mais os abrisse. Nunca fizera parte daquele mundo. Nunca o deixaram fazer parte daquele mundo. Mas, por quê? Nunca saberia.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Da janela...

Cheguei em casa muito cansada, com muitas coisas para fazer, sem paciência, com muitas frustrações, com muita esperança. Coloquei Chico Buarque para tocar enquanto, parada em frente a janela, observava outras janelas. Observava novas vidas na esperança de encontrar nessas vidas a solução para uma única vida. No prédio da frente um homem de camisa amarela e cabeça branca também parecia preocupado. Observava com atenção, procurava algo muito difícil de achar. Será que perdeu um objeto muito querido ou o dinheiro que reservara para pagar as contas? Ou perdera os óculos? Ou ele nem usa óculos? Ou enfim, perdera o rumo da própria vida. Na janela abaixo do homem uma criança brincava despreocupada. A brincadeira parecia muito interessante. A mãe passa, fala alguma coisa e a menina permanece ali, entretida com as peças do novo brinquedo. Grandes peças coloridas são colocadas uma em cima da outra. Será que ela constrói um prédio? Rosa, azul, amarelo, verde. Ou será que está construindo a própria vida? Mais abaixo uma mulher conversava ao telefone. Parecia brigar. Não estava tranqüila. A tranqüilidade passa longe de seu rosto, que estampa olhos cheios de lágrimas. A notícia certamente é ruim. Será que brigou com alguém especial ou apenas está desabafando? Será que perdeu mais do que algo especial? A vida deve estar difícil. E enquanto Chico Buarque invade o quarto com suas canções, percebo que o dia está acabando. A tarde se vai e a noite chega de mansinho. Um avião passa e no instante em que paro para olhá-lo, percebo que todas as janelas já se fecharam. Só a minha está aberta. Todas as vidas já foram achadas, construídas, choradas. Só a minha ainda está por aí. Então eu fecho a janela ao mesmo tempo em que Chico se cala. E fico presa em meus pensamentos. E nessa hora já esqueci tudo. Já vou deitar porque ainda estou cansada. Não sei o que fazer e se vou dar conta de fazer. A paciência eu já não sei se foi perdida. As frustrações são as mesmas. A esperança ainda está lá. E a vida deve estar vagando por aí... Quem sabe pulou alguma janela e entrou na vida de outra pessoa? Quem sabe a vida de outra pessoa não pulou a minha janela e entrou na minha vida?

sexta-feira, 5 de março de 2010

Abraço mundo tempo abraço

Essa é a história da menina que queria ser tudo ao mesmo tempo, que queria ter tudo ao mesmo tempo, que queria fazer tudo ao mesmo tempo. A mãe dessa menina sempre dizia (como dizem todas as mães para proteger suas crias) que ela queria abraçar o mundo. E a menina achava normal. O mundo era grande, mas ela conhecia pouco do mundo e o que ela conhecia mesmo, na sua pequena visão, era possível de ser abraçado. E ela ia com muita vontade, arriscando tudo de uma forma que só os jovens são capazes de arriscar. Se existia medo, ele estava justamente na parte do mundo que ela não conhecia. O mundo da mãe era maior, cheio de experiências, de tombos, de recaídas, de acertos. Um mundo construído por quem um dia já quis abraçá-lo. E era por isso que a mãe dizia com tanta firmeza pra menina ir devagar. Mas devagar também ficava na parte desconhecida. E a parte desconhecida só pode ser descoberta por quem a desconhece, não adianta avisar. Quem já conhece, pela melhor das intenções, é incapaz de mostrá-la a qualquer outra pessoa porque a parte desconhecida é de cada um. O mundo é de cada um. Não existe mundo igual. E os braços que vão abraçar também são únicos. E o abraço é único. Logo o abraço, algo feito para acolher, para proteger, para ninar, não alcança o mundo. Logo o abraço, aquele que aproxima e que une, deixa o mundo tão distante. É que o mundo não foi feito para abraços. Não foi feito para ser abraçado. E a menina, por não saber disso, queria abraçar o mundo. Queria envolvê-lo em seus bracinhos e aproveitá-lo. E admirá-lo. E possuí-lo. Mas o mundo não podia ser possuído justamente porque existia o desconhecido. E o desconhecido era a parte ruim do mundo. Mas a menina não tinha medo e continuou tentando ser tudo. Queria andar a pé, mas queria dirigir. Queria estudar, mas queria namorar também. Queria ler todos os livros e ouvir todas as músicas. Queria tomar banho de sol, mas queria que chovesse. Queria estar na praia, mas gostava da rua. Queria ajudar as pessoas que precisavam dela. E tudo ao mesmo tempo. É que o tempo também estava na parte desconhecida. Bem, a menina já tinha ouvido falar dele, mas falar só não adianta. E a menina desafiou o tempo. Desafiou o desconhecido. E então o desconhecido aconteceu. A menina conheceu o medo. O medo e o tempo. O medo do tempo. E teve medo de perder o tempo, e tempo de sentir medo. A menina percebeu que eles andavam juntos, que não se separavam nunca. E aí quis abraçar o desconhecido já conhecido. Mas foi ela a abraçada. Engolida. Devorada. Sofreu muito. Chorou muito quando sentiu seu abraço rejeitado. E tentou fugir. Correu para os braços da mãe. Os mesmos braços que também tentaram abraçar o mundo, dessa vez, não foram rejeitados. Porque as mães, essas sim são feitas para abraçar. E a menina não se sentiu sozinha. Deixou-se abraçar e proteger-se. Aninhou-se naquele abraço e de lá não quis sair mais. Tinha medo agora. Mas o tempo também ensina. Ensina que o medo faz parte da vida e que o tempo não tem todo o tempo do mundo. E que o mundo é muito grande e perigoso. Mas que conhecendo o desconhecido do mundo, um dia será possível abraçar. Não abraçar o mundo, porque ele realmente é muito grande, mas abraçar aquele que o mundo rejeitou um dia.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A todos os que vivem no Haiti

Peço desculpas a todas as pessoas que vivem no Haiti. Sei que o mundo não está sendo justo com vocês. Desde sempre. Não é fácil passar fome, viver na precariedade, na insegurança. Peço desculpas a todas as mães que perderam seus filhos. Desculpe-me as crianças abandonadas no escuro, na fome, na falta de um chão, de um abraço, de um conforto. Desculpe-me os homens que perderam suas companheiras, suas moradas. Peço desculpa ao povo haitiano que perdeu seu país, seu orgulho, sua dignidade. Peço desculpas pelo esquecimento, pelo abandono, pela falta de ajuda. Peço desculpas pela falta de cuidado com o mundo e por todas as dores que isto tem causado a vocês. Eu também estou sofrendo. Mesmo longe. Estou sofrendo ao ver cada rosto machucado, cada corpo sem vida apodrecendo nas ruas que não mais são ruas, que são pedaços. Pedaços de uma vida, fragmentos de uma história esquecida. Sinto uma dor a cada choro desesperado, a cada pedido de socorro. Mas sinto uma esperança muito grande a cada mão que é estendida e a cada pedra que é levantada. Sei que não mereço o perdão de vocês, haitianos. Sei que o mundo não merece. Mas também sei que seremos perdoados. O sofrimento nos torna, cada vez mais humanos, cada vez mais seres humanos. E esses sim são capazes de perdoar com a mais pura sinceridade. Mesmo aqueles que tanto mal lhes causou e que foram capazes de lhes tirar o pouco que tinham. Peço força a vocês. Peço, mesmo que seja difícil, que acreditem em Deus. Que confiem em um mundo melhor. Que confiem que, assim como vocês, outros seres humanos estão espalhados pelo mundo e estenderão a mão para ajudá-los. Peço perdão, mas peço também para todos que tem condições: ajudem. Não virem a cara. Ajudem. Não finjam que são imbatíveis, intocáveis. Vocês sabem que não são. Ajudem as crianças e seus pais. Lhes dê comida, água, um lar. Lhes dê amor e lhes mostre confiança. Não desistam deles. Não desistam de vocês. Não desistam de nós. Não desistam do mundo.Não desistam da vida.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Achados [3]

Estavam perdidos, mas agora estão depositados aqui.

A volta para a casa é sempre prazerosa. Pessoas no metrô. É estranho como não conheço ninguém, mas é interessante, pois com meia hora de observação posso traçar um perfil. Não sei se é correto, mas me deixo imaginar. Permito-me o dom da criação. Crio pessoas que não existem (ou existem?), mas que, no entanto, estão na minha frente. São de carne e osso. E pura ficção.

Achados [2]

Estavam perdidos, mas agora estão depositados aqui.

Era um típico dia de outono.O Sol aparecia tímido no céu, o vento chegava de leve e como uma criança travessa bagunçava os nossos cabelos. Assim, o clima estava agradável e Belo Horizonte, como de costume, não parava. As largas ruas da capital mineira eram tomadas por veículos grandes ou pequenos, mas insistentemente barulhentos, e por pessoas dos mais diversos tipos que, ao andarem lado a lado, de forma muito apressada e com feições quase sempre cansadas, perdiam suas características especiais, tornando-se apenas a multidão que mais uma vez cortava as ruas da cidade. A impaciência era grande: motocicletas cortando carros de forma inconseqüente, buzinas disparadas sem motivos, homens e mulheres gritando uns com os outros de forma assustadora, mães correndo atrás e xingando as crianças choronas que insistiam em não obedecê-las, cachorros latindo, pássaros cantando, alarmes disparados... Realmente, Belo Horizonte não parava e o caos perturbador e rotineiro impedia aos que passavam de aproveitar o agradável dia de outono. Talvez, nem soubessem do outono. Talvez soubessem demais das horas...
Eu, a mais nova moradora de Belo Horizonte, me juntara a tantas outras pessoas e parada em um ponto estratégico, esperava pelo ônibus que me levaria até em casa. Sempre morei na tranqüilidade do interior de Minas e a movimentada vida de BH me assustava. Em seis meses de capital, jamais ouvira um bom dia quando saia para a aula. Sorrisos eram raros. Os moradores, por costume, medo ou sabe-se lá o que, se limitavam a caminhar sozinhos, preocupados com as sacolas e pastas que carregavam, com um fone em um dos ouvidos e o celular no outro. As pessoas, que em minha cidadezinha sempre apresentavam faces conhecidas, na grande cidade, para mim, não passavam de meros e arrogantes desconhecidos.
O dia continuava agradável e eu continuava a espera do ônibus, até que ele chegou vazio e com uma rapidez estonteante, encheu. Por sorte consegui um lugar para me sentar e como a viagem seria longa, resolvi brincar de adivinhar. Pessoas ao meu lado eram colocadas à prova em minha cabeça e os meus olhos, um tanto observadores, criavam perfis para cada um dos passageiros. Ao meu lado, um homem em seus quarenta anos, roupa formal, fisionomia triste e cansada, aparentava um mau humor e uma intolerância muito grande. Mera suposição. Grande surpresa. O ônibus lotado viajava com muitas pessoas de pé e esse mesmo homem que estava sentado, em um gesto leve, ofereceu-se para segurar as sacolas de uma mulher que estava em pé e não podia se apoiar em nenhum lugar, tamanho o peso que carregava. Meus olhos saltaram de espanto. Então, ainda havia gentileza na Belo Horizonte que se recusava a parar? Não só havia como se revelou naquele homem. Logo ele, que meus olhos insistiam em revelar-me nenhum pouco gentil. A partir daí, a viagem tornara-se familiar. Sentia-me dentro do ônibus daquela cidadezinha do interior, onde rostos conhecidos se ajudavam. Um sorriso se abriu tímido no canto de minha boca. Mas logo a frustração. Nenhum rosto familiar. Nenhum sorriso em troca, nem mesmo o do homem gentil. O ônibus parou, pessoas desceram e como sempre seguiram seus caminhos com a cabeça baixa. Naturalmente, Belo Horizonte não parava. Não parava para um agradável dia de outono e muito menos para uma menina do interior.

Achados

Estavam perdidos,mas agora estão depositados aqui.


A cidade amanheceu dormindo. Ainda está escuro e chove muito lá fora. O vento sopra forte enquanto os moradores das ruas se encolhem sob os jornais úmidos e tentam, em vão, espantar o frio. Janelas e portas se mantém trancadas e o único barulho que se ouve é o dos pingos caindo sobre os telhados. As crianças dormem serenamente, as mães também dormem, mas preocupadas em planejar o dia que vai chegar com esta manhã. Os pais roncam alto, parecem não se preocupar com nada. A chuva continua forte e a enxurrada leva toda a sujeira das ruas que logo é substituída pelas folhas e flores que se desprendem das árvores. Os primeiros pássaros ensaiam um canto tímido, enquanto os mais preguiçosos continuam escondidos entre os galhos, em silêncio. Cães e homens disputam o pequeno espaço embaixo das marquises. O silêncio é então interrompido pelo primeiro barulho de motor. Um fusca velho segue em direção à estrada. O cheiro da chuva logo e apagado por um forte cheiro de café novo. A cidade, então, lentamente, acorda. O canto dos pássaros, agora, é uníssono e alto. As primeiras janelas se abrem, mas com o frio, logo são trancadas novamente. Algumas luzes já podem ser avistadas. Crianças choram enquanto as mães preparam o café da manhã. Televisões estão ligadas e os pais, sérios, prestam atenção às primeiras notícias do dia. A chuva continua forte. As portas são destrancadas e mulheres saem deslumbrantes em seus vestidos. A cidade é tomada pelo colorido das sombrinhas e guarda- chuvas. Vermelhos, amarelos, rosas. As ruas estão tomadas por rodas e sapatos. O silêncio não mais se ouve. Cães e homens são expulsos das marquises. Buzinas, gritos, música. A cidade que amanheceu dormindo já se encontra de pé.

Para as longas horas de espera e solidão: escrever. Eis a solução

Enquanto o tempo não passa eu vou escrevendo...

Quatro e cinquenta. Restam apenas dez minutos. Logo será cinco horas e aí restará uma hora. A chuva cai. Lá fora os carros passam e jogam água nas pessoas que andam pelas calçadas. As senhoras passam com seu casacos e sombrinhas. As crianças brincam de pular as poças d'água que aparecem no caminho enquanto as mães, impacientes, juram doces e palmadas quando chegarem em casa. As ruas estão todas iluminadas e o cheiro do Natal se espalha por todo o ar. Que pena que aqui não neva. Se nevasse ia ser tão lindo! As ruas iluminadas estariam cobertas por um tapete branco e então, à noite, com o céu todo escuro, eu iria pensar que as nuvens caíram no chão, que o mundo virou de cabeça para baixo e agora eu estaria no céu, caminhando sobre todo aquele tapete branco de nuvens. As estrelas se confundiriam com os postes e luminárias acesas. As pessoas seriam anjos. Ah! Teríamos anjos louros, anjos ruivos, anjos negros. Todos tocando suas harpas e convivendo em harmonia. Mas aqui não neva. Aqui o céu não muda de lugar. Só vejo a chuva, as ruas iluminadas, as mulheres e suas sombrinhas, as crianças e as poças e as mães. Já passa das seis. Só mais uma hora enfim e fim.

Receita

Estou muito triste. Descobri que não nasci para cozinhar. Por mais boa vontade que tenha, não consigo cumprir à risca nenhuma receita. Por mais que esteja tudo lá, bem escrito, explicado, indicando como se faz, parece que uma força maior me empurra para o caminho contrário e me obriga a fazer de um jeito diferente. Mais uma vez me frustrei. Hoje, na tentativa de fazer um pão de queijo. Receita simples que eu não consegui cumprir. Um ovo a mais e a massa desandou. Era para o café, para impressionar as pessoas que amo. Era para me satisfazer, mas, mais uma vez, não deu certo. Então, enquanto mexia a massa com raiva, percebi que cozinhar não é nada além do que o reflexo de minha própria vida. O cheiro forte do queijo, o leite milimetricamente derramado e basta um ovo a mais para acabar com tudo. O mesmo ovo que é símbolo de vida. A chuva caia enquanto eu seguia na tentativa de acertar. A receita estava lá, me mandando fazer, me mostrando o caminho para a felicidade e eu simplesmente não consegui seguir. Um único caminho errado e minha vida se misturou àquela massa mole, de cheiro forte, gosmenta. E quanto mais eu afundava minhas mãos para alcançá-la, mais ela escorria por meus dedos. Então parei. Desisti. E tive raiva por desistir tão cedo. Uma última tentativa de reparar o erro. Um estrondo! A televisão queimou e junto com ela, a felicidade mais uma vez fugiu. Por que não segui a receita? Mas a chuva parou. O calor do forno alimentava a esperança. E aí deu certo. O pão de queijo deu certo. A vida deu certo. Cresceu, tomou forma, adquiriu consistência, cor... Mas faltou o sal. Eu sabia. Continuou incompleta, longe. E eu só dando voltas, desviando, fugindo dela. Mas por que eu não segui a receita? Porque não existe receita. Eu sou a receita. Errada. Errando. Para acertar. Um dia, quem sabe. Não nasci para cozinhar, mas me desculpe, tenho um enorme talento para a felicidade. Só não sei como chegar lá. Ainda.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Mudanças... não feitas

Pensei em mudar o nome do blog para "depósito de textos" ou "depósito das palavras". Pensei que "Jornalística" não era o nome ideal para o tipo de texto que estou postando. Na verdade, quando criei esse blog a proposta era outra. Mas gosto dele assim. Gosto dos textos que estão nele, embora nunca tenha coragem de mostrá-los a alguém. Prefiro pensar que estão num depósito mesmo. Esquecidos. Desconhecidos. Quanto a mudança do nome, resolvi não colocá-la em prática. Entendi o que ela quer dizer. Está clara.

Clarice,

Estou lendo a bela biografia de Clarice Lispector (Clarice,) escrita por Benjamin Moser. Enquanto passava pelos capítulos que remontam a trajetória dessa fabulosa escritora, uma das minhas prediletas, recordei um texto que fiz há algum tempo sobre minha relação com Clarice. Não me lembro muito bem, mas talvez tenha escrito isso quando acabei de ler, pela milésima vez, o conto “Felicidade Clandestina”, um dos mais bonitos, simples e sinceros que já li.

Clarice caiu em minhas mãos como as folhas caem das árvores no outono: tão naturalmente que nem percebi. Quando dei por mim já estava tomada pela tal “felicidade clandestina” que a frágil menina do Recife carregava envolvida em seus braços. Fui arrebatada. Aquela história me fascinou de tal forma que não conseguia mais parar de ler. E assim seguiu. Lia as crônicas, os contos, os romances, mas com uma dúvida sempre presente em minha mente: quem será a menina/mulher que de forma tão simples conseguia complicar as coisas mais rotineiras da vida humana? Como já disse, Clarice veio até mim de forma natural. Conhecia Clarice pelos livros que escolhia, entusiasmada, nas estantes. Nunca a tinha visto. E lendo, tinha uma possível imagem do que seria Clarice. Uma forma disforme. Em determinadas histórias tinha a certeza de lidar com uma mulher madura, de experiências bem definidas. Mas, ao mudar de parágrafo, aquela imagem se desfazia rapidamente. A mulher madura dava lugar a uma pequena menina. Sofrida. E como sofria! E como tinha pena daquela menina! Mas, subitamente, a menina também sumia. O sofrimento também sumia. Clarice, então, parecia uma página em branco prestes a ser preenchida. Como? Não tinha a menor idéia. E por muito tempo preferi assim. Não conhecer Clarice. Talvez se olhasse seu retrato desvendaria a mulher, a escritora, o mistério. E percebi que era muito melhor construir uma Clarice através das pistas que eu encontrava em seus textos. Era como se um ponto de interrogação ou qualquer palavra olhassem para mim e me dissessem: “olha sou eu. Me desvende, me ache.”Mas eu nunca achei. Não de forma precisa. Seria ela a menina que amava os livros, ou a senhora perdida no Maracanã? A menina que conversava com as galinhas ou a pobre mulher que foi atropelada? Clarice era tudo aquilo. Então eis que vejo o retrato daquela mulher que sempre me chamou a atenção. E assim como a “felicidade clandestina” havia me arrebatado, aqueles olhos faziam o mesmo. Não olhavam. Fuzilavam. Era a mulher. Era a menina. Era triste. Serena. Forte. Não consegui identificar. Era como se aquela foto olhasse para mim e risse. “Não é possível. Sou eu!”. Mas ainda não sei quem era. Assim como seus textos, sua fisionomia gostava de brincar. Hora revelava tudo, hora escondia. E assim Clarice vai permanecer para mim. Forma. Disforme.

Salve Clarice Lispector