sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
Hoje é o último dia do ano
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
Em casa, ao som de Nara Leão
sábado, 13 de novembro de 2010
Obrigado, não
Quatro meses sem escrever nada pode parecer nada para muitos, mas muito para mim. O problema é que estou escrevendo, mas não o que quero. É pesado o ritmo de estágio e faculdade. Estou produzindo mais para os outros do que para mim mesma. Mas, essa não é a proposta da literatura e até mesmo do jornalismo? Um subjetivismo coletivo. Escrevo o que penso e sinto para os outros. Posso até ter escrito o que penso, mas o que sinto... Dificilmente, até porque, o tempo para sentir é curto. Mas, como aprendi um dia e ouvi da escritora Marina Colassanti, não podemos ler apenas porque gostamos e, mais ainda, ler apenas o que gostamos. A obrigação também faz parte da vida. Admito que na hora fiquei um pouco decepcionada, mas agora entendo e faço minhas as palavras dela. Não posso escrever apenas o que gosto. A obrigação também faz parte. Mas aí, modifico o pensamento: posso sim escrever, justamente porque gosto. Se não gosto, para quê escrever? Por que tem a obrigação? Sinto muito, essa eu não engulo. E aí fico imaginando como é escrever por obrigação. E descubro que é isso que faço agora, afinal, são quatro meses sem publicar nada. Já passa de obrigação. Mas é uma obrigação com gosto. O mesmo é o caso do jornalismo. Escrevi várias matérias. Todas por obrigação, pois o jornal tinha que sair. Mas também tinha gosto ali. Gosto em escolher cada palavra que usei em meus textos. Gosto em ver sentimentos, trabalho e esforço, tudo reduzido a palavras. Aí, descobri que obrigação e gosto podem andar juntos e que é tudo muito mais fácil quando andam juntos. E aí descobri que estou cansada de escrever por obrigação, então coloco o ponto final e termino tudo aqui, antes que obrigação e gosto briguem e a obrigação passe a andar sozinha.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
Por amor
Ainda estava acabando de fazer o almoço quando o marido chegou em casa. Estava contente e trazia nas mãos uma caixa de papelão com vários furos nas laterais e na parte superior. Desligou o fogão e, ao chamado do marido, também movida por certa curiosidade, foi ver o que tinha dentro da caixa. Será que era um presente para ela? Mas o que seria? Não conseguia imaginar. O marido não era lá um homem tão romântico e presente àquela altura... Tudo bem que era uma boa esposa. Amava e respeitava o marido, cuidava da casa, era fiel... Então a caixa fora aberta. Surpresa. Lá dentro, encolhido e tímido, o pássaro preto se escondia no fundo da caixa. “- Não é lindo?”. E como falar ao marido que não? Ela não era muito chegada a bichos, mas olhando o pássaro lá no fundo da caixa, bem que ele tinha seus encantos. Trataram logo de arrumar um lugar para o bichinho. Ele não ficava preso, pois não se adaptou bem à gaiola. O amor do marido pelo pássaro cresceu. Era todo cuidados e mimos. Chegava do trabalho e corria direto para as asas do pássaro. Punha comida, dava água, banho, cantavam juntos... Depois jantava, dava um beijo na mulher e ia assistir TV. O pássaro pousava ao lado do sofá e por lá ficava até a hora de dormir. E a relação com a mulher só piorava. Era pior do que se ele tivesse uma amante. Dividir a atenção do marido com um pássaro. E ela odiava o animal a cada dia. Nunca sentira isso antes. Ela que sempre fora tão meiga tão cheia de amores. Incapaz de fazer mal a menor das criaturas. E via seu casamento se deteriorar a cada dia. Tentou sumir com o bicho enquanto o marido não estava em casa. Ia dizer que fugira pela janela enquanto ela tomava banho. Mas o animal era esperto e deu logo um jeito de se fazer de coitado. O marido brigou com ela. Quase saiu de casa e a ideia de sumir com o pássaro preto é que sumiu. A saída para os problemas era a boa convivência. Mas a ave, com aqueles olhos de piedade, por dentro, era pura vingança. Quando o marido saía para o trabalho a crueldade começava. E tinha início o espetáculo. A ave atacava a mulher. Corria atrás dela por toda a casa. Bicava suas pernas, seus braços, seu cabelo. A mulher gritava. Chamava os vizinhos e até mesmo estranhos que passavam pela rua. Pedia para que prendessem a ave, dessem sumiço nela, mas o pássaro era só simulação. Conquistava o carinho de todos e reinava absoluta no lar que a mulher tanto lutara para construir. Quando o marido chegava era para a ave que ele corria. Acusava a mulher de fazer mal ao indefeso bicho. Ela, então, passava por louca e a ave, por dentro, ria daquela pobre mulher. E todo dia era a mesma cena. Ataques, acusações. A mulher se reduzia a nada dentro de sua própria casa. Até que um dia surgiu a oportunidade perfeita. Ela também sabia ser cruel. Sabia defender o que era seu. Foram viajar. Insistiu para que o marido levasse o pássaro também. Pela primeira vez colocaram-no em uma gaiola. A gaiola fora trancada dentro do porta malas. O pássaro viajou tranqüilo. Sabia do amor do homem por ele. Chegaram ao destino, a mulher jogou todas as suas armas, bem como fazem as mulheres quando o que está em jogo é a família, o lar, a dignidade. E desse modo fez o homem esquecer o pássaro. Esse ficou dias trancado na escuridão do porta malas. Não tinha água nem comida. Teve medo da solidão e da morte. Aos poucos, fraco, foi se definhando. Quando o homem se lembrou já era tarde. Estava morto. A mulher, simulando surpresa, chorava com os olhos e ria com toda a sua alma. Culpou o marido. Como pôde ser tão distraído? E quando tivessem filhos? Não os deixariam sozinhos com ele. O veneno escorria por seus lábios, mas o gosto da vitória era amargo. Olhando para o pássaro sem vida, jogado pelo canto, triunfou, mas logo veio a culpa. Em seguida a pena. Nunca conseguiria retomar o casamento com essa mentira. Como podia ser tão cruel? Pobre ave. Mas foi por amor. E por amor também se mata. Tratou logo de enterrar a ave, consolar o marido e continuar a vida.
terça-feira, 13 de julho de 2010
De quem é o poder?
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim." (LISPECTOR, p. 106)
Mas aí lembrei-me de uma música que dizia que "os livros não são sinceros". E aquilo nunca ficou claro para mim. Até aquele instante. Devemos aproveitar as oportunidades que a leitura nos oferece, mas não devemos nos prender a ela. Devemos procurar essas oportunidades não só nas páginas de livros, mas no mundo. Os livros podem ser amigos, mas também sabem ser cruéis. Porque são feitos inteiramente por seres humanos. Quer maior crueldade do que essa? E são formados por palavras, pela linguagem. E a linguagem é inteiramente humana. Barthes disse que a língua é cruel, que condiciona e domina o homem. O homem que sabe usá-la, consequentemente domina outros homens ou, pelo menos, pensa que domina. Mas a verdade é que todos somos dominados por ela. Não só o ato da leitura pode ser comparado ao de se drogar. O de escrever também. Ao escrever o autor cria um mundo que não é o que ele realmente vê. E que nunca poderá ser, pois a linguagem, por mais que tente, nunca chegará perto do real. Então, mais uma vez ela nos engana e nos faz acreditar que aquilo que escrevemos é real, quando, nada mais é, do que apenas uma parte do real. Mas Barthes também afirma que a literatura é a única forma de salvar o homem da arbitrariedade da língua, justamente porque através dela é que temos contato com outros mundos, outras realidades. Mas aí ouço novamente a canção que diz que "os livros não são sinceros" e sou obrigada a concordar com ela. E também concordo com Barthes. Os livros nos dão tudo. Nos oferecem a oportunidade de, pelo menos por um instante, esquecer o que está errado em nossas vidas, nos dão a oportunidade do renascimento, de viver outras vidas, que sao renovadas a cada página que viramos, a cada palavra. Mas são traiçoeiros, porque a nova vida se esgota ali, no último ponto. E dessa vez, não oferecem a oportunidade da escolha e nem nos preparam para isso. Com aquele ponto atiram em nós e definem o fim daquela vida que achávamos ser nova. E assim permanecemos na constante ilusão de que estamos no poder porque temos a língua como aliada. Clarice dizia que a palavra era seu domínio sobre o mundo. E agora questiono se realmente temos esse domínio. Posso mudar o mundo com palavras, é claro. Mas, será mesmo que eu estou no comando? Se leio e escrevo como me drogo, para fugir, será mesmo que tenho esse poder? Ao mesmo tempo que escrevo cartas para amigos e falo sobre flores, posso denunciar mazelas e torturas. Posso calar a censura, mas, ao mesmo tempo, tenho que acreditar nas flores, do contrário, a censura me cala. Então percebo que somos todos dependentes das palavras, da língua. "Minha pátria é a minha língua". Estou sujeito a ela, mas nela também encontro a liberdade. Se "os livros não são sinceros" é porque a língua não o é. É porque o homem não o é. "De quem é o poder? Às vezes você me domina pensando que eu sou teu dono. Me dê poder e eu te mostro o mais inteiro dos sonhos".
quarta-feira, 30 de junho de 2010
Jornalistica
quarta-feira, 23 de junho de 2010
Contos II
Lorena chegou mais cedo em casa. Conseguira terminar todas as laudas e agora podia deitar em sua cama e dormir até o dia seguinte. Tomou um banho quente e rápido, colocou o pijama de flanela azul e as meias novas. Prendeu os cabelos loiros e encaracolados com o elástico que estava em cima da mesa de cabeceira e deitou-se na cama. Fechou os olhos por longos instantes, mas o sono não vinha. Enquanto os olhos permaneciam fechados, por pura insistência, apenas uma imagem aparecia no escuro. Era ele. Fazia tanto tempo. Tempo suficiente para esquecer, mas Lorena era estupidamente fraca. A mesma calça desbotada, a camisa sem passar, os cabelos longos e negros, a barba por fazer. No rosto o mesmo sorriso de lado ora escondia, ora mostrava os dentes brancos. Os mesmos olhos baixos, calados e tímidos. Sim, era ele. Lorena abriu os olhos rapidamente. Não queria lembrar. Justo agora que estava tão bem, que conseguira viver a vida de forma tranqüila. Que estava novamente empregada, ganhando bem e pensando até em comprar um novo apartamento e deixar as lembranças para trás. Agora não. Correu até a cozinha e pegou a garrafa de vodca que estava dentro da geladeira. Ao abrir o armário para pegar o copo encontrou a velha xícara que ele tanto gostava. E lembrou-se do café amargo que ele odiava, mas mentia gostar só para agradá-la. Fechou os olhos enquanto tocava toda a extensão da xícara. Parou em um ponto onde havia uma rachadura. Cortou a ponta do dedo como sempre acontecia, mas dessa vez não havia ninguém para cuidar do corte e lembrar o quanto Lorena era manhosa. Deixou a xícara sobre a mesa e voltou ao quarto. Abriu o armário e puxou uma caixa amarela onde se lia 1970. De dentro da caixa surgiram fotos antigas nas quais Lorena usava o vestido que a mãe sempre odiara, mas que ele adorava. A barriga já crescida era envolvida por mãos firmes e carinhosas. Estava acompanhada do mesmo sorriso de lado e a barba por fazer. Eram felizes. No fundo da caixa, um envelope escondia as belas palavras que ele sempre enviava. Os erros de português ficavam pequenos se comparados ao grande amor que aquelas palavras mal escritas exalavam. Na última carta, um pedido de desculpas era acompanhado por um sapato de bebê vermelho, que nunca seria usado. E Lorena chorou. Chorou tanto que as lágrimas molharam o papel já amarelado pelo tempo. E ela teve raiva. Raiva como nunca tivera antes, nem mesmo quando ele colocou as malas no carro e sumiu por entre as ruas e avenidas, deixando-a sozinha no apartamento sem saber como encarar a mãe e todo o resto do mundo. Lorena era tão nova. A vida era tão nova. E pegou tudo: caixa, retratos, xícara. Queimou, rasgou, quebrou. E jogou os restos no lixo, assim como havia feito com a sua vida há exatos 20 anos. E decidiu não mais lembrar tantos detalhes. E fechou os olhos e tentou dormir. E decidiu que a partir de então tudo seria diferente. Acordou assustada. Vestiu a primeira roupa que encontrou e saiu para o trabalho. No caminho avistou uma figura conhecida. Estava de costas e caminhava com a mesma lentidão de sempre. Os cabelos longos eram bagunçados pelo vento. Não. Não pode ser. Aquele caminhar parecia provocar Lorena; “olha, não adianta nem tentar me esquecer.” Desesperada, Lorena mudou a direção do carro e seguiu por entre ruelas apertadas. Já passara ali antes, mas fazia tanto tempo. Desceu do carro e apressou o passo. A chuva começou a cair. Lorena corria como nunca correra antes. Queria gritar, mas a voz lhe faltava. As lágrimas se misturavam às gotas de chuva. “Durante muito tempo em sua vida eu vou viver” – dizia aquele caminhar. Até que Lorena não agüentou mais. Parou. Ajoelhou-se no meio da rua e olhou o homem indo embora. Ele virou o rosto de lado e Lorena pode ver os mesmos olhos baixos desaparecerem mais uma vez. E permaneceu ali, ajoelhada por tempo indefinido, relembrando os detalhes que a deixava tão feliz, relembrando todos os momentos que viveu e os que poderia ter vivido, sonhando a família que teria, o casamento que não aconteceu o filho que não dormiu em seus braços. Enquanto isso a chuva continuava a cair e o homem desaparecia pela longa estrada. E Lorena viu o grande amor morrer ali, bem na sua frente. De novo. Amor tão grande, incapaz de ser esquecido. Amor que de tão grande chegava a doer. Que se perdia entre mil detalhes, todos, que só restava a Lorena relembrar. Levantou-se, voltou até o carro, deixou a música tocar no último volume e seguiu. Não tinha destino, assim como não tinha amor, assim como não tinha mais ninguém, assim como não tinha mais vida. O carro atravessou a estrada e sumiu no meio do oceano. A vida reduziu-se a quase nada. Mas quase nada também era mais um detalhe. E a vida se reduziu a nada. Nem mais detalhes e fim.
Contos
Estava sozinho em casa. A televisão ligada era a única companhia, a única forma de vida dentro da sala escura, pois nem ele achava que estava vivo mais, tamanha era a solidão. Mas, em um último sinal de sua condição humana, sentiu fome. Despertou em um impulso só. Não conseguia mais ouvir o que a bela mulher comentava na televisão. Só ouvia o rude barulho que vinha de dentro de si. Era tão forte que chegava a doer. Então se levantou e foi até a cozinha. Acendeu a luz e ficou um tempo parado, observando toda aquela bagunça. A louça acumulada dos dias anteriores ocupava todo o espaço da pia. Um pedaço de lasanha se decompunha em um canto da mesa enquanto uma barata passava apressada entre copos e garfos. Passado o asco, esqueceu-se da cena e dirigiu-se até o armário. A porta rangeu, ou seria o seu atestado de vida que se manifestava através da fome? Não importava mais quando viu uma coisa surpreendente. Ali dentro do armário quase vazio, entre um pacote de biscoitos já aberto e um vidro de geleia estava um panetone. Um panetone, grande, novinho, dentro de uma linda embalagem e amarrado com fita vermelha. Ficou feliz. Ia saciar a fome e voltar para a solidão da sala, onde a mulher da televisão insistia em falar. Pegou uma faca para cortar um suculento pedaço, mas de repente, em um impulso maior do que o que lhe enviou até a cozinha, parou. Ficou observando aquele panetone dentro do armário. E então voltou até a sala e percebeu que se esquecera de montar a árvore de natal. Olhou pela janela e confirmou que os vizinhos também se esqueceram de enfeitar as casas. Foi aí que ouviu na televisão a pior notícia de todos os tempos: Ainda era Março. Março repetiu bem alto. Mas como o panetone estava no armário se ainda não era natal? Pegou o embrulho para verificar a data de validade. Já devia estar velho, meu Deus, a que ponto chegou. Mas era novo. Havia sido fabricado há pouco tempo e, ao abrir o pacote, sentiu o cheiro das frutas cristalizadas. O cheiro do Natal. Mas não havia natal. Então perdera a fome, a mesma condição que ainda o fazia humano. E tentou entender. Quando era menino e ainda morava com a avó, o panetone na mesa indicava que a família se reuniria para comemorar a data tão especial. Encontraria os primos, tias e tios que não via há muito tempo. Ganharia presentes e cantaria canções especiais. Depois, sairia com a avó para assistir a missa e enquanto o padre rezava, brincaria com as outras crianças do lado de fora da igreja. Passada a data especial, a rotina voltaria a acontecer. O pai voltaria a beber e a bater na mãe em seus ataques de fúria. Seria mais uma vez motivo de deboches na escola e passaria o resto dos dias a sonhar com a data tão especial novamente. Em que, pelo menos uma vez, faria parte de uma família. Em que, pelo menos uma vez, seria importante e lembrado por alguém. Mesmo que fosse de mentira. Mas aquele panetone indicava que tudo se acabara. A estratégia capitalista de oferecer o produto a qualquer hora e a qualquer dia do ano banalizara o que para ele representava o único momento de vida. E assim, fora obrigado a retornar à condição animalesca de sua triste trajetória. Dessa vez, para sempre. Sem válvula de escape uma vez por ano. Sem fingir, uma vez por ano, que era feliz. Que fazia parte de um lugar e que fazia falta nesse lugar. Num acesso de fúria jogou o panetone contra a parede. Chorou como uma criança medrosa. Sentiu vergonha e se sentiu pequeno. Fora engolido mais uma vez. Parado, olhando para o panetone no chão teve a ideia que o tiraria daquela condição triste e sozinha que sempre fora obrigado a aceitar. Não perderia mais uma vez. Seria astuto e revidaria o próprio destino. Se a indústria lhe dava panetone todos os dias, todos os dias seriam natal. E ele então poderia viver o belo dia durante todos os dias do ano. Armaria a árvore, compraria presentes e chamaria alguns conhecidos para jantar. E assim o fez. Mas não aconteceu. As pessoas se afastaram mais. Foi chamado de louco, pensaram que havia voltado a beber. Chamaram os médicos e ele foi levado. Ainda tentava convencer a enfermeira de que era natal, de que haveria uma grande festa, mas ninguém queria ouvir. Aplicaram-lhe uma injeção e o jogaram em um quarto escuro. Então descobriu que não poderia mudar o destino e que a vida havia de ser assim. Recolheu-se à sua insignificância e, chorando, fechou os olhos. E rezou para que nunca mais os abrisse. Nunca fizera parte daquele mundo. Nunca o deixaram fazer parte daquele mundo. Mas, por quê? Nunca saberia.
quarta-feira, 21 de abril de 2010
Da janela...
sexta-feira, 5 de março de 2010
Abraço mundo tempo abraço
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
A todos os que vivem no Haiti
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
Achados [3]
A volta para a casa é sempre prazerosa. Pessoas no metrô. É estranho como não conheço ninguém, mas é interessante, pois com meia hora de observação posso traçar um perfil. Não sei se é correto, mas me deixo imaginar. Permito-me o dom da criação. Crio pessoas que não existem (ou existem?), mas que, no entanto, estão na minha frente. São de carne e osso. E pura ficção.
Achados [2]
Era um típico dia de outono.O Sol aparecia tímido no céu, o vento chegava de leve e como uma criança travessa bagunçava os nossos cabelos. Assim, o clima estava agradável e Belo Horizonte, como de costume, não parava. As largas ruas da capital mineira eram tomadas por veículos grandes ou pequenos, mas insistentemente barulhentos, e por pessoas dos mais diversos tipos que, ao andarem lado a lado, de forma muito apressada e com feições quase sempre cansadas, perdiam suas características especiais, tornando-se apenas a multidão que mais uma vez cortava as ruas da cidade. A impaciência era grande: motocicletas cortando carros de forma inconseqüente, buzinas disparadas sem motivos, homens e mulheres gritando uns com os outros de forma assustadora, mães correndo atrás e xingando as crianças choronas que insistiam em não obedecê-las, cachorros latindo, pássaros cantando, alarmes disparados... Realmente, Belo Horizonte não parava e o caos perturbador e rotineiro impedia aos que passavam de aproveitar o agradável dia de outono. Talvez, nem soubessem do outono. Talvez soubessem demais das horas...
Eu, a mais nova moradora de Belo Horizonte, me juntara a tantas outras pessoas e parada em um ponto estratégico, esperava pelo ônibus que me levaria até em casa. Sempre morei na tranqüilidade do interior de Minas e a movimentada vida de BH me assustava. Em seis meses de capital, jamais ouvira um bom dia quando saia para a aula. Sorrisos eram raros. Os moradores, por costume, medo ou sabe-se lá o que, se limitavam a caminhar sozinhos, preocupados com as sacolas e pastas que carregavam, com um fone em um dos ouvidos e o celular no outro. As pessoas, que em minha cidadezinha sempre apresentavam faces conhecidas, na grande cidade, para mim, não passavam de meros e arrogantes desconhecidos.
O dia continuava agradável e eu continuava a espera do ônibus, até que ele chegou vazio e com uma rapidez estonteante, encheu. Por sorte consegui um lugar para me sentar e como a viagem seria longa, resolvi brincar de adivinhar. Pessoas ao meu lado eram colocadas à prova em minha cabeça e os meus olhos, um tanto observadores, criavam perfis para cada um dos passageiros. Ao meu lado, um homem em seus quarenta anos, roupa formal, fisionomia triste e cansada, aparentava um mau humor e uma intolerância muito grande. Mera suposição. Grande surpresa. O ônibus lotado viajava com muitas pessoas de pé e esse mesmo homem que estava sentado, em um gesto leve, ofereceu-se para segurar as sacolas de uma mulher que estava em pé e não podia se apoiar em nenhum lugar, tamanho o peso que carregava. Meus olhos saltaram de espanto. Então, ainda havia gentileza na Belo Horizonte que se recusava a parar? Não só havia como se revelou naquele homem. Logo ele, que meus olhos insistiam em revelar-me nenhum pouco gentil. A partir daí, a viagem tornara-se familiar. Sentia-me dentro do ônibus daquela cidadezinha do interior, onde rostos conhecidos se ajudavam. Um sorriso se abriu tímido no canto de minha boca. Mas logo a frustração. Nenhum rosto familiar. Nenhum sorriso em troca, nem mesmo o do homem gentil. O ônibus parou, pessoas desceram e como sempre seguiram seus caminhos com a cabeça baixa. Naturalmente, Belo Horizonte não parava. Não parava para um agradável dia de outono e muito menos para uma menina do interior.
Achados
A cidade amanheceu dormindo. Ainda está escuro e chove muito lá fora. O vento sopra forte enquanto os moradores das ruas se encolhem sob os jornais úmidos e tentam, em vão, espantar o frio. Janelas e portas se mantém trancadas e o único barulho que se ouve é o dos pingos caindo sobre os telhados. As crianças dormem serenamente, as mães também dormem, mas preocupadas em planejar o dia que vai chegar com esta manhã. Os pais roncam alto, parecem não se preocupar com nada. A chuva continua forte e a enxurrada leva toda a sujeira das ruas que logo é substituída pelas folhas e flores que se desprendem das árvores. Os primeiros pássaros ensaiam um canto tímido, enquanto os mais preguiçosos continuam escondidos entre os galhos, em silêncio. Cães e homens disputam o pequeno espaço embaixo das marquises. O silêncio é então interrompido pelo primeiro barulho de motor. Um fusca velho segue em direção à estrada. O cheiro da chuva logo e apagado por um forte cheiro de café novo. A cidade, então, lentamente, acorda. O canto dos pássaros, agora, é uníssono e alto. As primeiras janelas se abrem, mas com o frio, logo são trancadas novamente. Algumas luzes já podem ser avistadas. Crianças choram enquanto as mães preparam o café da manhã. Televisões estão ligadas e os pais, sérios, prestam atenção às primeiras notícias do dia. A chuva continua forte. As portas são destrancadas e mulheres saem deslumbrantes em seus vestidos. A cidade é tomada pelo colorido das sombrinhas e guarda- chuvas. Vermelhos, amarelos, rosas. As ruas estão tomadas por rodas e sapatos. O silêncio não mais se ouve. Cães e homens são expulsos das marquises. Buzinas, gritos, música. A cidade que amanheceu dormindo já se encontra de pé.
Para as longas horas de espera e solidão: escrever. Eis a solução
Quatro e cinquenta. Restam apenas dez minutos. Logo será cinco horas e aí restará uma hora. A chuva cai. Lá fora os carros passam e jogam água nas pessoas que andam pelas calçadas. As senhoras passam com seu casacos e sombrinhas. As crianças brincam de pular as poças d'água que aparecem no caminho enquanto as mães, impacientes, juram doces e palmadas quando chegarem em casa. As ruas estão todas iluminadas e o cheiro do Natal se espalha por todo o ar. Que pena que aqui não neva. Se nevasse ia ser tão lindo! As ruas iluminadas estariam cobertas por um tapete branco e então, à noite, com o céu todo escuro, eu iria pensar que as nuvens caíram no chão, que o mundo virou de cabeça para baixo e agora eu estaria no céu, caminhando sobre todo aquele tapete branco de nuvens. As estrelas se confundiriam com os postes e luminárias acesas. As pessoas seriam anjos. Ah! Teríamos anjos louros, anjos ruivos, anjos negros. Todos tocando suas harpas e convivendo em harmonia. Mas aqui não neva. Aqui o céu não muda de lugar. Só vejo a chuva, as ruas iluminadas, as mulheres e suas sombrinhas, as crianças e as poças e as mães. Já passa das seis. Só mais uma hora enfim e fim.
Receita
domingo, 10 de janeiro de 2010
Mudanças... não feitas
Clarice,
Clarice caiu em minhas mãos como as folhas caem das árvores no outono: tão naturalmente que nem percebi. Quando dei por mim já estava tomada pela tal “felicidade clandestina” que a frágil menina do Recife carregava envolvida em seus braços. Fui arrebatada. Aquela história me fascinou de tal forma que não conseguia mais parar de ler. E assim seguiu. Lia as crônicas, os contos, os romances, mas com uma dúvida sempre presente em minha mente: quem será a menina/mulher que de forma tão simples conseguia complicar as coisas mais rotineiras da vida humana? Como já disse, Clarice veio até mim de forma natural. Conhecia Clarice pelos livros que escolhia, entusiasmada, nas estantes. Nunca a tinha visto. E lendo, tinha uma possível imagem do que seria Clarice. Uma forma disforme. Em determinadas histórias tinha a certeza de lidar com uma mulher madura, de experiências bem definidas. Mas, ao mudar de parágrafo, aquela imagem se desfazia rapidamente. A mulher madura dava lugar a uma pequena menina. Sofrida. E como sofria! E como tinha pena daquela menina! Mas, subitamente, a menina também sumia. O sofrimento também sumia. Clarice, então, parecia uma página em branco prestes a ser preenchida. Como? Não tinha a menor idéia. E por muito tempo preferi assim. Não conhecer Clarice. Talvez se olhasse seu retrato desvendaria a mulher, a escritora, o mistério. E percebi que era muito melhor construir uma Clarice através das pistas que eu encontrava em seus textos. Era como se um ponto de interrogação ou qualquer palavra olhassem para mim e me dissessem: “olha sou eu. Me desvende, me ache.”Mas eu nunca achei. Não de forma precisa. Seria ela a menina que amava os livros, ou a senhora perdida no Maracanã? A menina que conversava com as galinhas ou a pobre mulher que foi atropelada? Clarice era tudo aquilo. Então eis que vejo o retrato daquela mulher que sempre me chamou a atenção. E assim como a “felicidade clandestina” havia me arrebatado, aqueles olhos faziam o mesmo. Não olhavam. Fuzilavam. Era a mulher. Era a menina. Era triste. Serena. Forte. Não consegui identificar. Era como se aquela foto olhasse para mim e risse. “Não é possível. Sou eu!”. Mas ainda não sei quem era. Assim como seus textos, sua fisionomia gostava de brincar. Hora revelava tudo, hora escondia. E assim Clarice vai permanecer para mim. Forma. Disforme.
Salve Clarice Lispector